Arquivo do mês: maio 2008

Embriagado de Amor (P.T. Anderson, 2002)

Por fora, um filme com fatos e mais fatos insólitos, de teor muitas vezes constrangedor; outras vezes assustadores, engraçados ou simplesmente incolores, acumulando-se dentro de um grande saco de pesadas placas metálicas, sendo levantado por uma frágil corda, prestes a cair na cabeça do pobre Barry Egan, personagem interpretado de forma surpreendente por Adam Sandler (ele mesmo) nesse curto e introspectivo filme de Paul Thomas Anderson. Por dentro: Um filme sobre a força exercida pelo amor. Filme este que sucedeu “Magnólia”, o que elevaria para a estratosfera as espectativas positivas em torno dele. Afinal, o cara que fez “Magnólia” poderia se superar? 

Aparentemente pacato e inofensivo,sendo com isso explorado por tudo e por todos durante o filme (desde a infância, pelo que se é passado), Barry Egan trabalha com… É um pequeno empresário que… Bom, ele trabalha dentro de um galpão, com alguns outros caras, e tem uma mesa e um telefone. Com o que Barry trabalha? Deve ser importante (para ele, ao menos), pois ele vai todos os dias de terno e gravata, mas a impressão que ele nos passa é que nem mesmo ele sabe o que está fazendo ali, com aquele paletó e gravata, vendendo aquelas coisas (desentupidores?) e atendendo os telefonemas assustadores de suas irmãs (são 7, cada uma mais sufocante que a outra – no pior sentido da palavra elevado à sétima potência).

Barry sente-se constantemente pressionado, sob eterna vigilância, como se fosse um pequeno hamster batendo com a cabeça contra as paredes, procurando pela portinha que o levasse até a saída, prestes a explodir a qualquer momento, roendo a parede de madeira vagabunda com os dentes e criando um atalho, como na vez em que quebra todo o banheiro de um restaurante (o responsável pela segurança do local pede para que ele se retire, pois viu o estado em que ficou o banheiro; Barry nega que tenha feito aquilo e então o cara pergunta-lhe porque sua mão estaria sangrando e ele suavemente responde “Eu me cortei com minha faca”. (auto-destruição ou defesa?) Igualmente estranho é quando deixam um piano (um pianinho – ou seria um órgão?), na calçada do lugar onde trabalha, depois de um abrupto acidente de carro que parece ensurdecer o silêncio apático de Barry e sua caneca de chá, café, ou sei lá o quê é que ele consegue enxergar por uma tímida luz se espremendo por uma estreita fresta. Porque ele o trouxe para dentro de seu escritório? “I Dont Know”,termo que parece muito bem definir o que Barry sabe, pra valer, até então.

Depois de muita insistência das irmãs, que o espremem contra a parede sem a menor piedade jogando em sua cara todas as pequenas fraquezas e inseguranças – que elas parecem conhecer muito bem -, Barry vai até certa festa em que todas as irmãs e cunhados se reuniriam. Quando lhe perguntam como está o trabalho, ele se enrola e responde “very food”,quando na verdade queria dizer “very good”, e suas irmãs parecem não ter assunto mais interessante para comentar  a não ser as “peripécias” cometidas por Barry (ou seria “sofridas”?) na infância. Começam a lembrar de uma vez em que ele atirou um martelo contra uma porta de vidro e em como ele ficava furioso quando elas o chamavam de gay. “Você é gay agora, Barry?” “I Dont Know”, ele responde, explodindo depois numa fúria incontrolável que o faz quebrar todas as vidraças da cozinha aos pontapés. Um déja vu? Qual seria o problema de Barry? É isso que ele próprio pergunta a um dos seus cunhados, que ele acreditava poder ajudar, por ser médico (era um dentista, na verdade). Barry não sabe como são as outras pessoas, para assim poder diagnosticar qual é o seu problema. E esse pode ser mesmo um problemão.

No mesmo dia em que o piano é deixado na rua e “adotado” por Barry, sua vidinha inócua começa a tomar forma, cor, sabor e tom. Primeiro, ele conhece uma garota chamada Lena (numa atuação da sempre marcante Emily Watson) que faz com que ele ouça barulhinhos diferentes flutuando em sua cabeça. Antes de Lena, porém,o espaço vazio que era sua existência havia sido “sub-preenchido” por uma idéia um tanto quanto ousada, o que parecia provocar nele uma adrenalina até então desconhecida: aproveitando-se de um furo no regulamento de uma promoção de uma empresa aérea, que dava de presente 500 milhas em vôo para cada 10 produtos (código de barra) envolvidos na promoção comprados. Comprando embalagens de pudim, com 4 embalagens cada (um código de barra para cada uma) por 0,99 centavos, Barry conseguiria ganhar muitas milhas, gastando pouco. Começou então a entupir seu escritório com caixas e mais caixas de pudim. Mas para onde Barry viajaria? Fez aquilo pensando no lucro, não na utilidade. Mal sabia que precisava na verdade fugir para bem longe. Havia entrado em uma grande enrascada ao telefonar para um Disk-Sexo e perceber no dia seguinte que o sistema de sexo por telefone com desconhecidas gemendo, roubando de pobres almas solitárias o sustento para si próprias, era na verdade uma camuflagem para uma facção criminosa, que começou a ameaçá-lo frequentemente, pedindo-lhe dinheiro,o que culminou em um assalto violento, em que Barry sai ferido. Não só por fora.

Pra piorar, Lena vai para o Havaí e, com isso, se vai o norte que haviam dado à sua vida. “Preciso comprar mais pudins”. Essa é a decisão de Barry para tentar resolver os problemas e concretizar soluções que lhe foram oferecidas. Compra muitas, muitas, muitas caixas de pudim mesmo! E vai ao Havaí. Lá, liga para uma das irmãs, amiga de Lena, e pede informações de onde ela poderia estar. Como esperado, sua irmã o enche de perguntas indiscretas às quais Barry não estava muito disposto a se expor, tal qual um garotinho negando a todos e a si mesmo que tinha uma namorada. Possesso pela fúria e fortalecido pelo conforto do amor que sentia por Lena (e talvez pela distância, afinal ele estava no Havaí), Barry dessa vez não curva a cabeça pra baixo e cospe no ouvido dela tudo o que sempre esteve entalado por tanto tempo. Raiva, muita raiva. Aquele intenso exorcismo é quebrado para um tom bem mais ameno quando enfim ele consegue encontrar Lena pelo telefone, num hotel. A ansiedade e euforia, por sentir-se mais independente, é tanta que ele parece não querer desperdiçar mais nenhum momento ou pensamento que lhe passe superficialmente pela cabeça, nenhuma dúvida. “Você tem namorado”? “Há quanto tempo não namora”? “Já foi casada”? “Por quanto tempo”? “Onde nasceu”? Tudo ao mesmo tempo, quase sem dar espaço para resposta, querendo entrar pelo telefone, esgueirar-se pelos fios e pular nos braços dela.

O encontro deles no hotel é épico, lindo, cinematográfico. Barry já não se importava em ser visto “de mãos dadas” com uma garotinha. Não era mais tão frágil. Aquela aparente embriaguez superficial de comédias românticas que o fez ir até o Havaí atrás de sua garota era, talvez, o estado mais sólido ao qual Barry já se submetera. Estavam amando, faziam juras de amor: “Quero morder sua bochecha e mastigá-la…” “Quero amassar o seu rosto com um martelo e esmagá-lo, você é tão linda…” “Quero arrancar seus olhos, comê-los, mastigá-los e chupá-los…”. Estavam amando e faziam juras de amor… Da forma deles. Não de uma forma predefinida pelos roteiristas de comédias românticas. Toma coragem e liga para os mafiosos do Tele-Sexo, deixando recado na secretária eletrônica, dizendo que a agressão foi injusta e que quer o dinheiro de volta. E ao voltarem de viagem são atacados pelos mesmos, de forma ainda mais violenta.

Dotado agora de uma força quase que de herói dos quadrinhos, Barry, armado com um pé de cabra, não hesita em derrubar, um a um, todos os capangas, de forma assustadoramente brutal. Barry já não tinha medo dos valentões da escola. Mas ainda não era maduro o suficiente para entender que mulheres gostam de atenção e deixa Lena sozinha no hospital enquanto vai tentar concluir de uma vez por todas o problema com os sacanas que o roubaram. Agressivo, procura pela garota do Tele-Sexo pelo telefone e pede para ela chamar seu chefe (participação brilhante e hilária de Philip Seymor Hoffman), o qual manda se fuder, atiçando a fúria do grande rei da máfia da pornografia. Com a mesma força com que derruba os seus capangas, consegue nocautear o chefão só afirmando, com toda a sinceridade que aprendeu a ter consigo mesmo nos últimos dias, que era um bom homem, e que tinha uma mulher que o fortalecia, e que eles deviam deixa-lo em paz. Voltando de Utah, pede desculpas a Lena, leva o piano (Arrá! Foi por isso que ele o trouxe pra dentro de casa?) para o apartamento dela e vivem assim felizes para sempre, viajando de aeroporto a aeroporto, graças aos pudins.
 
“Embriagado de Amor”,como eu disse lá no início do primeiro parágrafo, é muita coisa acontecendo ao mesmo tempo para, no fim, ser nada mais nada menos que uma história de amor, uma história de exaltação ao amor, de como esse sentimento tão famigerado e por vezes desgastado nas telas do cinema, na TV e até em nossas vidas pode ainda ser apresentado de forma crível, palpável, sem deixar de ser original. Pode não ser o melhor filme de PTA, afinal não é todo dia que se “pare” um “Magnólia”, mas é certamente um excelente filme, dentro da desgastada categoria “comédia romântica” (odeio rótulos). Aliás,esqueci de tocar num ponto interessante: Adam Sandler e sua atuação impecável. Impecável porque, se ele fez o mesmo personagem de sempre em todos os seus filmes, durante toda a sua carreira (O abobado indefeso e amável que conquista as pessoas por ser… abobado,indefeso e amável)? A resposta, acho, é mais simples do que parece: Adam Sandler estava desta vez trabalhando dentro de um contexto favorável a ele, tornando a natureza de seu personagem algo verossímil, pois nos apresentava o mundo da forma como ele a via. A cada corte brusco no andamento de uma cena, por um daqueles barulhinhos incômodos, e da trilha sonora totalmente atuante do filme, dos sustos repentinos e fatos sem muito nexo (aquele acidente de carro nas primeiras cenas fez meu coração pular até a boca) que acontecem no decorrer de sua trajetória, nos deixando tão atônitos quanto ele, a todo momento. Tudo isso, graças à direção, obviamente, sempre tocante e intensa do PTA, um dos grandes caras do cinema desta última década. Fica difícil não se envolver com o filme, não se sentir incomodado, perdido, atordoado, no limite da razão. Assim como acontece quando nos apaixonamos. Ou quando temos a sensação de que estamos, ao menos.
Preste atenção: Nos barulhinhos, nas cores, na iluminação, na trilha sonora… E no pianinho.

4/4

Rodrigo Jordão

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Verdades e Mentiras (F For Fake – Orson Welles, 1975)

De certa forma, o que Welles faz em Verdades e Mentiras não está muito longe daquilo que havia feito antes em qualquer um de seus filmes, com a diferença de que neste caso ele realmente assume estar brincando o tempo todo com a percepção do espectador e com a profundidade das imagens. E talvez tenha sido justamente essa liberdade de escancarar o verdadeiro sentido de sua arte – não é coincidência alguma ele começar F For Fake com um show de mágica e ter iniciado sua própria carreira fazendo números desta espécie – a grande responsável por transformar esse falso-documentário sobre falsificação no trabalho mais pessoal de Welles.

O jogo armado aqui, aliás, muito distante de pesquisar qualquer ponto de dissolução entre a verdade e a mentira, termina sendo uma das grandes obras-primas da carreira desse mestre obscuro do cinema – explico o obscuro: obscurecido detrás de seu filme mais famoso, o revolucionário Cidadão Kane, nem de longe seu melhor filme, embora excelente -, sempre instigante e dono de algumas das seqüências mais emblemáticas assinadas por ele, além de servir como uma espécie de mídia confissionária nos momentos em que Welles finalmente assume a charlatanice como sendo sua principal característica desde sempre, comparando seus próprios atos – ou simplesmente colocando-os lado a lado – com os de alguns dos mais famosos falsificadores do século XX.

É uma seqüência-chave da própria filmografia do Welles, e fica clara a vontade que o diretor tinha de se assumir desde sempre como um grande filho da mãe – coisa que todo o artista é, mas que alguns, em especial quando o termo é ligado ao cinema, vêem incompreensivelmente como um termo pejorativo – não fora, mas dentro das telas, enquanto ator dos seus próprios filmes. Acabou fazendo isso da maneira mais justa, entregando ao espectador um trabalho complexo e instigante que, como sempre, mantém sua cerne totalmente desenhada sobre a trapaça cinematográfica, grande responsável por fazer de Welles um dos mais importantes e fundamentais cineastas de toda a história – posto que qualquer plano ou seqüência montada deste ou de A Marca da Maldade pode justificar sem mais palavras.

4/4

Daniel Dalpizzolo

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Traição em Hong Kong (Boarding Gate – Olivier Assayas, 2007)

Por sorte Abel Ferrara não é o único que sabe utilizar Asia Argento num filme, mesmo que talvez ninguém mais consiga fazer dela uma figura tão importante e misteriosa como em New Rose Hotel. Acho que é preciso apenas uma coisa pra trabalhar com a Asia, e embora possa parecer bobagem no final isso é determinante, principalmente porque poucos conseguiriam fazer sem ferir todo o resto do material: não é ela que se adapta ao filme, é o filme que tem que ser pensado sobre ela.

Foi seguindo essa regra que o francês Olivier Assayas fez Boarding Gate, filme obscuro, não muito bem recebido e que provavelmente não deverá ser distribuído no Brasil – no máximo chega em DVD, mas se isso realmente acontecer será daqui a um bom tempo. Dá pra dizer que existe uma separação muito grande entre a primeira e a segunda parte, que podem ser consideradas tranquilamente dois filmes diferentes – a primeira se parece às vezes com a obra-prima máxima do Ferrara, mas aqui não existe a eliminação dos dois outros tempos enquanto o filme se concentra no terceiro, é uma solução entre passado e presente que consegue dar vazão aos sentimentos e fazer do jogo entre Argento e Madsen um momento tão grandioso -, mas esse survivor-thriller tenso e impressionante constrói entre as duas uma linha muito bem definida, que é claro, mantém-se viva na própria protagonista, que de caçadora passa a ser caçada quando se desloca de seu universo e condição usuais – as duas partes, aliás, formam uma desmistificação muito interessante do filme de gênero, e ambas são sensacionais, cada uma ao seu jeito.

E se tem alguém que pode levar um filme nas costas – ou nos peitos – nesse cinema atual, esse alguém é Asia Argento. A mulher é um misto de explosão sexual com a própria perversidade, e em Boarding Gate, em especial, carrega uma infinidade de sentimentos num olhar ou gesto mal acabado, ultrapassando às vezes o limite da própria personagem, que se condensa quase como uma versão de dois lados da mulher do século XXI, ao mesmo tempo auto-suficiente e comedida, mas jamais capaz de esconder seus sentimentos quando a coisa aperta. Tanto quanto a câmera de Assayas, que como num gesto de amor oculta por detrás da falta de foco o caminhar penoso de sua amante platônica.

4/4

Daniel Dalpizzolo

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Os Pássaros (Alfred Hitchcock, 1963)

Na maioria dos filmes de suspense/terror, normalmente os personagens principais se vêem acuados por uma força extremamente amedrontadora e intimidadora (seja ela um assassino em série, um espírito maligno, um ser de outro planteta) que seria, até certo ponto, impossível de doma–lá. Mas se, por um acaso, esses personagens fossem atacados por criaturas que, até onde alcança o nosso conhecimento, não nos fariam nenhum mal?? De certa forma, é o que Hitch aborda em “Os Pássaros”, filme que sucedeu o grande sucesso de crítica e público “Psicose” (e, provavelmente, o seu filme mais conhecido).

Nesse filme, temos a pacata cidade de Bodega Bay, na Califórnia, vive momentos de terror quando milhares de pássaros se instalam na localidade e começam a atacar as pessoas. Um enredo simples, talvez até difícil de se imaginar sendo desenvolvido durante as duas horas de filme. Mas Hitch consegue desenvolvê–lo com maestria, além de conseguir causar uma tensão poucas vezes vista em um filme.

Logo nos créditos iniciais, já temos uma boa idéia do que será o filme: não há trilha sonora (como, aliás, em todo o filme). apenas os créditos mostrando os dados usuais do filme (nome, diretor, roteirista, atores), com imagens de pássaros voando descontroladamente (além de ruídos feitos por eles). Isso cria, antes mesmo do filme começar, uma sensação de que o filme será diferente de outros dirigidos por ele (isso será explicado mais adiante).

Se os créditos iniciais cumprem o esperado (preparar o telespectador para o clima de tensão), o primeiro ato do mesmo serve justamente para quebrar essa sensação. O que vemos é um típico início de uma comédia romântica, com os ingredientes típicos de um filme de Hitchcock: a loira estonteante – no caso, Melaine Daniels (“Tippi” Hendren, em sua estréia no cinema); o “homem comum”, eternizado em seus filmes por Cary Grant e James Stewart (no caso, Mitch Brenner, aqui interpretado por Rod Taylor); o típico humor característico dos seus filmes; a trama amorosa entre os dois personagens principais. Entretanto, através de certos detalhes inseridos na trama (como, por exemplo, a revoada de pássaros observada por Melaine pouco antes de entrar na loja de pássaros), Hitch nos mostra que algo de estranho está por acontecer.

Nesse primeiro ato, temos o encontro entre Melaine e Mitch Brenner (que acontece de forma inusitada) na loja de pássaros. À princípio, Melaine não se interessa por Mitch (especialmente por ele ter judiado dela). Mas, logo depois, ela se vê bastante intrigada em relação àquele homem, e decide, por conta própria, presenteá-lo dois periquitos (que ele pedira na loja de pássaros para dar de presente a sua irmã). Como ele não se encontrava presente em sua residência, Melaine decide ir até Bodega Bay, a fim de concretizar sua pequena ”vingança”.

Aliás, nesse trajeto percorrido por ela (primeiro de carro e depois de barco), vemos a maestria da direção de Hitch: toda a cena é conduzida sem diálogos ou trilhas, apenas com imagens. Mas a beleza dessa cena não advém apenas de um retorno ao cinema mudo: Hitch, como grande manipulador, mantém o estado de tensão constante, à medida de Melaine se aproxima da casa de Mitch. A partir do motor do barco ligado, a câmera mostra, alternadamente, a visão de Melanie da casa de Mitch do outro lado da baía e um plano objetivo em que se vê o barco vindo de frente e a vastidão do mar e do céu ao fundo. Essa alternância de planos e a longa duração da sequência, que mostra todo o percurso de Melanie, sugere ao espectador que algo de extraordinário está na iminência de acontecer. O suspense é garantido até o final da seqüência, quanto Melanie faz o caminho de volta de barco (com Mitch a seguindo de carro pela costa): o ataque inexplicável de uma gaivota à Melanie.

Aqui, cabe explicar o por quê desse filme ter um tom um tanto quanto diferente de outros de Hitchcock: Aqui não há um assassino, e sim uma série de acontecimentos que, ao final, não serão resolvidos! Isso mesmo, não espere que Hitchcock mastigue para você toda a filosofia existente dentro de Os Pássaros. Há um constante tom sobrenatural, e isso ajudou bastante a não haver essa necessidade para o filme. Isso pode ser considerando um ato de coragem por parte de Hitch, pois não podemos esquecer que esse filme sucede “Psicose”, talvez o grande sucesso dele. O filme que seguiria seu grande clássico teria de ser bom o bastante para agradar aos fãs, sedentos por uma nova história que fosse tão boa quanto a anterior.

A partir dessa cena, temos o início do segundo ato: depois do ataque deliberado do pássaro à Melanie, somos apresentados aos outros personagens residentes de Bodega Bay: a irmã de Mitch, Cathy Brenner (Verônica Cartwright, aqui com 13 anos de idade); a mãe de Mitch (interpretada por Jessica Tandy), além da professora de Cathy e ex–namorada de Mitch Annie Hayworth (interpretada por Suzanne Pleshette), que hospeda Melanie durante a sua estadia e Bodega Bay. Ao mesmo tempo, Hitch, ainda nos preparando para o “prato principal”, nos mostra maiores indícios de que algo estranho está acontecendo naquela cidade: pássaros que não param de migrar; galinhas que se recusam a comer a ração; pombos voando deliberadamente em direção a porta, entre outros. Todos esses fatos culminando no que determina, na minha opinião, o fim do segundo ato: O ataque dos pássaros à festa de aniversário de Cathy. Tudo isso conduzido com a maestria de Hitch na direção.

A partir desse ataque, temos o terceiro ato: cada vez mais ataques acontecem na cidade. Aqui, cabe ressaltar a qualidade técnica do filme: poucos filmes são tecnicamente perfeitos como esse. A edição primorosa, o trabalho primoroso de maquiagem (especialmente nas pessoas vitimadas pelos pássaros), a equipe de efeitos especiais (que fez um dos trabalhos de pintura em matte e chroma key mais primorosos do cinema), todos fizeram um trabalho perfeito. Uma cena que evidencia isso é o ataque dos pássaros ao posto de gasolina, especialmente na cena em que Melanie está presa na cabine telefônica. Essa cena mostra outro aspecto técnico bastante apurado do filme: o fato da diversa sobreposição de películas para criar três camadas na tela. A primeira película tinha Melanie dentro da cabine telefônica, com alguns pássaros atingindo o vidro para ficar real; a segunda camada era alguns pássaros animados que ficavam passando de um lado para o outro em tom ofensivo; e a terceira camada era simplesmente uma pintura! Isso mesmo, usaram uma pintura de fundo e ela ficou simplesmente PERFEITA, irreconhecível, parece até cenário de verdade. Filmado uma película de cada vez, juntaram as três na edição e montaram a aterrorizante cena.

A direção de Hitch não fica atrás e mostra um dos trabalhos mais primorosos aqui, com perfeito domínio da câmera e do efeito que esta irá causar no telespectador. Um exemplo clássico disso é a cena do ataque dos pássaros ao colégio de Cathy: Enquanto Melanie espera no banco do lado de fora do colégio, vemos a câmera acompanhar o vôo de um corvo; em seguida, a câmera foca Melanie e, ao fundo, vemos três pássaros pousados em um cercado; a câmera volta a focar o vôo do pássaro anterior, cortando em seguida para o rosto de Melanie, até que o pássaro pousa no cercado; quando vemos o cercado, temos dezenas de pássaros pousados nele, como se estivessem prontos para o ataque. Essa é uma das cenas mais aterrorizantes do filme para mim, e que mostra o controle absoluto de Hitch na direção a fim de causar a tensão constante ao telespectador. Tensão essa que percorre todo o restante do filme, seja pelos ataques repentinos dos pássaros, que invadem a casa de Mitch Brenner; ou pelo silêncio ensurdecedor que precede (e sucede) o ataque dos pássaros, não dando nenhum momento para o telespectador “decansar”.

Aqui vale ressaltar um dos elementos fundamentais geradores da atmosfera de tensão que recobre quase todo o desenrolar do filme: a falta de explicação do súbito comportamento agressivo dos pássaros de Bodega Bay. O que dá margem, inclusive, à uma sequência deliciosamente cômica, quando vários do habitantes da região discutem sobre o problema dos pássaros em um bar, com destaque para o contraste entre a ornitóloga cética e o bêbado apocalíptico. O absurdo do comportamento dos pássaros que, inexplicável e violentamente, agridem as pessoas às enxurradas e de modo intermitente, acaba por aumentar a angústia do espectador, que não sabe o que esperar para a cena seguinte. Aí é que Hitchcock brinca com nossas expectativas, nos surpreendendo com um violento ataque ou com uma, não menos estranha, quietação momentânea dos pássaros.

Outro ponto importantíssimo a ressaltar é a trilha sonora. Ou, melhor dizendo a ausência dela. Hitch, a fim de criar uma tensão cada vez mais constante, optou por usar apenas efeitos sonoros, além de se utilizar de ruídos (feitos a partir de enormes sintetizadores), especialmente de pássaros. Isso ajudou a criar um clima de tensão constante, que uma trilha sonora não conseguiria dar. Bernard Herrmann, grande colaborador de Hitch nas trilhas sonoras, foi classificado como consultor sonoro desse filme.

Por fim, temos a cereja que faltava para dar o toque final a esse filme: o “final”. Na verdade, não é um final clássico, visto que o filme acaba de forma bastante abrupta, o que com certeza incomodou grande parte do público (e que ainda incomoda muita gente). Após a angustiante fuga dos protagonistas a casa de Mitch, em meio a um sem–número de pássaros, em direção à ponte de São Franscisco, o filme é interrompido, sem a tradicional à época “The End”. O que pode parecer sem sentido param muitas pessoas, para Hitch (e todos aqueles que compartilham da sua visão) é apenas a fria constatação do cenário apocalíptico que os pássaros causaram àquela cidade e aos seus habitantes. Ao determinar essa escolha, Hitch “deixa no ar” se eles realmente conseguiram fugir dos pássaros ou não, levando o telespectador a pensar nisso depois do “fim” do filme, obrigando–o a carregar essa tensão para a saída do cinema. Esse foi mais um toque de mestre de Hitchcock.

“Os Pássaros” pode não ser a obra mais famosa de Hitch (ou mesmo a mais venerada), mas ela pode ser considerada uma das mais emblemáticas de sua vasta carreira. A sensação que se têm depois de assistir essa obra–prima é que, mesmo 48 anos depois, com todos os avanços tecnológicos surgidos desde então, poucos diretores teriam o detalhismo e o perfeccionismo necessário para executar tal façanha, além de coragem suficiente de fazer tantas escolhas que, a princípio, soariam equivocadas. E essas qualidades são dadas a poucos gênios cinematográficos. Hitch tinha isso e muito mais, fato que pode ser comprovado em suas seis décadas de carreira e quase o mesmo número de filmes. Era um dos poucos que sabia criar o suspense como ninguém, mesmo que esse suspense venha de criaturas que nunca imaginaríamos!

4/4

Adney Silva

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Metropolis (Fritz Lang, 1928)

Metropolis

“O mediador entre a cabeça e as mãos deve ser o coração”.

É a partir desse epigrama que se inicia “Metropolis”, um dos marcos iniciais da ficção – científica no cinema. Apesar desse gênero estar presente na história do cinema quase desde o seu início (com “Viagem a Lua”, produzido por George Méliès, sendo um dos mais lembrados dessa época), “Metropolis” consolidou o gênero como sendo de relevância para àquela arte ainda jovem na época do lançamento desse filme.

Aliás, a importância de “Metrópolis” vai além de um simples gênero; ele é considerado, por muitos, a pedra fundamental do “Expressionismo Alemão”, o que não deixa de ser um fato curioso, pois ele, ao mesmo tempo, representa, numa análise mais superficial, o “encerramento” dessa escola cinematográfica (digo “encerramento” entre aspas pois, assim como em qualquer forma artística, o início e o fim de um gênero não é bem delineado). Assim, o filme, ao mesmo tempo que representa para muitos o ápice do “Expressionismo”, é também o canto de cisne desse mesmo gênero.

Em “Metropolis”, somos apresentados a uma cidade do século XXI (mais precisamente, do ano de 2026, exatamente um século após o início das filmagens desse filme). Enquanto os operários, vitais para o funcionamento das máquinas e da própria cidade (representando, assim, as “mãos” da cidade), vivem nas cidades subterrâneas de Metropolis, os Mestres (que, por sua vez, são a “cabeça” da cidade) vivem na superfície, levando uma existência de prazeres e despreocupação. É quando Freder, filho do poderoso Joh Fredersen, se apaixona por Maria, que é, na verdade, uma espécie de ‘pregadora’ dos operários, que se reúnem para ouvir seus discursos pacifistas. Joh Fredersen, percebendo isso, pede a Rotwang (Klein-Rogge) dê as feições de Maria ao robô que este acaba de construir, a fim de que ela possa incitar os operários à violência, permitindo que os Mestres ataquem-nos por sua ‘insubordinação’.

Logo na primeira cena percebemos toda a dispariedade existente entre essas duas classes: Nesta cena, temos os operários voltando de uma árdua e longa jornada de trabalho (de 10 horas), todos eles se encaminhando para os elevadores que levam às cidades subterrâneas. Todos eles se encaminham com passos marcados, lentos, cabisbaixos, desolados, esgotados física e psicologicamente, como se fossem soldados derrotados capturados pelas forças inimigas, se encaminhando para o pelotão de fuzilamento. Todo esse clima melancólico e tenebroso é contribuído por uma trilha sonora igualmente tenebrosa e triste. Em seguida, ao mostrar os “habitantes da superfície”, temos uma mudança radical de tom; temos vários jovens disputando uma corrida em um campo de atletismo, num cenário totalmente diferente do anterior, acompanhado por uma trilha sonora igualmente grandiosa. Essa diferença bastante evidente entre as duas classes principais é mostrada durante todo o filme.

Esse tema é também evidenciado pelos magníficos cenários do filme, resultando num cenário perturbador. A cidade da superfície, com seus prédios imponentes e enormes e ruas estreitas (chegando ao requinte de termos aviões sobrevoando os prédios), gera uma sensação claustrofóbica e de ansiedade ao espectador. Ao mesmo tempo, somos envolvidos justamente pela grandiosidade e pela arquitetura dos prédios (destacando a Torre de Babel e o seu teto de cinco pontas). Em contrapartida, as construções da cidade subterrânea são simples, “padronizadas”, com seus prédios rigorosamente iguais, dando a ela uma sensação de “cidade – dormitório”, própria apenas para alojar os trabalhadores na sua pequena jornada de descanso.

Outra construção que enche os olhos do espectador é a “Casa das Máquinas”. Ela é tão inteligentemente “construída” que os funcionários que trabalham nela o fazem em certos “nichos” onde os mesmo se alojam, como se fizessem parte de sua anatomia, gerando uma “quase – simbiose” entre o homem e a máquina. A cena onde contemplamos pela primeira vez essa construção, onde os operários trabalham nesses nichos, em movimentos compassados e sincronizados, “mecanizados”, o que evidencia cada vez essa simbiose “homem – máquina”, é impressionante, bem como a cena de sua destruição, quando um de seus funcionários sucumbe à exaustão. A seqüência da ‘explosão’, com funcionários sendo atirados do alto da máquina, é fantástica, surpreendendo até nos dias de hoje. A cena seguinte a explosão, onde Freder, ao observar “Casa das Máquinas” sendo explodida, têm uma alucinação durante a qual a máquina se transforma em uma espécie de monstro que devora os funcionários, representa uma metáfora daquilo que realmente acontece em Metropolis, no qual os homens , ao sucumbirem à tecnologia, tornando-se meros escravos das máquinas. Afinal, não são apenas os operários que dependem destas – os mestres também devem a elas a tranqüilidade de suas existências.

As atuações são um caso à parte: extremamente exageradas, pode – se dizer, em uma análise superficial, que elas são extremamente caricatas. Entretanto, por se tratar de um filme mudo (e, mais ainda, um representante legítimo do “Expressionismo Alemão”, onde a iluminação, os cenários e principalmente as atuações caracterizavam o “estado de espírito” dos personagens), podemos dizer que o exagero das atuações faziam parte do processo. Esse “estado de espírito” é também evidenciado pela configuração dos figurantes em várias cenas do filme (foram utilizados cerca de 30000): no início do filme estes andavam em blocos geometricamente dispostos, ilustrando com perfeição a subordinação à qual estes se viam obrigados. Já mais para o final da história, eles continuam a andar em blocos, mas sem qualquer tipo de padrão observável, ou seja: são, ainda, uma unidade – mas sem que tenham de sucumbir às ordens dos mestres.

Ainda temos ótimas metáforas nesse filme. Quando os trabalhadores (que obedecem fielmente as ordens da falsa Maria, sem nem ao menos desconfiar da sua mudança radical de atitude), provocam uma inundação na cidade subterrânea (gerando uma outra cena impressionante e forte), colocando os seus filhos em perigo, podemos interpretar como se as máquinas, em um determinado momento da história da humanidade, interferem radicalmente no futuro do Planeta.

Apesar de todas essas interpretações (que se mostram, nos dias de hoje, surpreendentemente atuais), o filme foi duramente criticado na época de seu lançamento, sobretudo por àqueles que não simpatizavam com o seu conteúdo político (entre eles, o escritor H.G. Wells). Outro fato curioso é que, Hitler, fascinado pela suntuosidade e grandiosidade do filme, pediu para que o seu braço-direito Goebbels convidasse Fritz Lang para assumir a ‘chefia’ da indústria cinematográfica alemã. O diretor agradeceu, recusou a proposta e partiu às pressas para Paris. No entanto, sua esposa (Thea von Harbou, autora do roteiro de Metropolis) não só ficou para trás, como também se tornou uma nazista.

Assim, “Metropolis” se confirma como um grande marco não só do Expressionismo Alemão” ou da ficção – científica, mas da própria história do cinema. Suas várias interpretações das conseqüências do avanço tecnológico e da dispariedade de classes que esse avanço provoca surpreende até hoje, tanto pela sua realização quanto pela sensibilidade de Fritz Lang de perceber que, quase 80 anos depois de sua obra, a “Metropolis” do filme está presente em quase todas as grandes cidades de forma mais intensa do que nunca.

4/4

Adney Silva

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Extermínio (Danny Boyle, 2002)

Exterm�nio

Extermínio é um filme perturbador. Não tanto pelas pessoas infectadas que deixam uma Inglaterra completamente deserta, mas sim pelas conseqüências morais que uma cidade totalmente anárquica pode oferecer. E isso é explorado com muita propriedade nesse filme.

Em um futuro recente, na Inglaterra, um grupo de ambientalistas resolve invadir um laboratório que usa animais como cobaias. Mas eles chegam tarde demais, pois os macacos a serem libertados já estão infectados com um vírus letal e incontrolável: a Raiva. Ao abrir a jaula do primeiro símio, uma das ativistas é atacada e contrai o vírus. Em poucos segundos ela se torna um zumbi raivoso, cujo instinto é atacar sem hesitação, infectando suas vítimas, que por sua vez vão atacar mais pessoas. Quem sobrevive aos ataques é transformado neste ser movido a ódio. Já na cena inicial, Danny Boyle mostra a que veio: numa saudosa referência a Laranja Mecânica, vemos símios sendo obrigados a assistir várias cenas envolvendo violência. Essa cena tem um grande impacto do telespectador, imprimindo desde o primeiro frame o clima apocalíptico retratado no filme. Dá para sentir o desespero de se encontrar completamente sozinho em uma grande, barulhenta e populosa metropólis. Totalmente desolador.

Passadas as 4 semanas (ou 28 dias, como diz o título do filme), a doença se torna uma epidemia e toda a Inglaterra é devastada. É nesse cenário que o entregador Jim (Cillian Murphy) acorda depois de um mês de coma. Ao acordar, aos poucos ele percebe que o hospital onde ele estava internado (assim como, mais tarde, toda a cidade) está deserto. Esse fato resulta uma das cenas mais aterrorizantes do filme; por longos sete minutos, Jim vaga solitariamente por uma cidade – fantasma, onde não há nenhum indício de uma viva alma. Essa cena precede outra igualmente impactante; após essa solitária caminhada, Jim chega a uma igreja, e logo vê uma cena também aterrorizante: vários corpos no chão, aparentemente mortos. Mas, ao primeiro sinal de vida, alguns desses corpos se levantam rapidamente, mas alguma coisa neles não inspira confiança. Até que o padre – também infectado – chega para atacar Jim. Nesse momento inicia –se uma perseguição agitada e desenfreada (ajudada pela câmera agil, mas sem ser “videocliptica”, de Danny Boyle).

Nisso, ele acaba se deparando com Selena (Naomie Harris), Frank (Brendan Gleeson) e sua filha Hannah (Megan Burns) e descobrindo a terrível verdade sobre o que aconteceu enquanto dormia. Aprende também que o vírus se transmite através do contato de sangue com feridas ou mucosas (boca, olhos, etc) e uma vez infectado deve-se matar a vítima imediatamente, independente de quem ela seja, pois após 20 segundos ela já está completamente dominada. Juntos eles decidem ir até Manchester, onde o exercíto teria a solução para a epidemia…

A escolha por atores desconhecidos do grande público se mostrou bastante acertada, uma vez que todas as atenções se voltam para o desenvolvimento da história. E esses atores, especialmente Cillian Murphy, agarram essa chance com unhas e dentes, resultando em atuações bastante agradáveis.

Ao retratar a pelegrinação dos personagens até Manchester, Danny Boyle nos mostra cenas inegavelmente tensas ( como, por exemplo, a que se passa no interior de um túnel). Isso se deve, principalmente, a forma como ele optou de retratar os “infectados”: apesar de terem algumas semelhanças com zumbis (o que levou boa parte dos telespectadores pensarem que se tratava de um filme sobre zumbis), eles possuíram uma mobilidade bastante alta, o que acabou tornado os “infectados” ainda mais ameaçadores. Além disso, Danny Boyle preenche esse segundo ato com momentos de puro intimismo e felicidade, como o momento em que eles percorrem um supermercado abandonado ou ainda observam pacientemente alguns cavalos galopando ao longe. Isso promove algumas reflexões entre os personagens do filme sobre as impressões de um mundo onde se vislumbra o possível fim da evolução de uma espécie (especialmente no trecho onde um deles diz que “Você jamais lerá um livro que já não tenha sido escrito ou verá um filme que já não tenha sido rodado”.

Cabe ressaltar também um aspecto bastante relevante na construção dos personagens: o quanto a sensação de isolamento e de total falta de esperança pode fazer com que os sentimentos sejam retraídos. Em outras palavras: “até que ponto devemos podar nossos sentimentos para que consigamos sobreviver num mundo totalmente inóspito?”. Isso é ressaltado pelo comportamento de Selena: ao encontrar Jim, ela em nenhum momento hesita em mostrar que está disposta a fazer qualquer coisa para sobreviver, inclusive matar sem qualquer hesitação o seu companheiro ao detectar a mínima possibilidade dele ter sido infectado (afinal de contas, são poucos segundos entre a infecção e o “estado descontrolado” das vítimas). Nas próprias palavras de Selena: “Não faz sentido ter planos. Ficar vivo é o melhor que se pode aspirar.”. Esse “instinto exarcebado de sobrevivência” é totalmente colocado em contraponto com a personalidade de Frank e Hannah: eles, por terem um ao outro, são muito mais serenos, e, por isso, possuem uma visão diferente e mais otimista para o desfecho dessa infecção. Essas visões antagônicas são muito bem trabalhadas no roteiro.

Um outro aspecto positivo da película é a opção de Danny Boyle por filmar com câmeras digitais: além do fácil transporte e manuseio (o que permitiu que as cenas de Londres e Manchester desertas fossem filmadas com a rapidez necessária), isso permitiu que se criasse uma atmosfera totalmente urbana e realística ao filme, resultando em imagens cruas e com aparência documental.

Mas o melhor estava sendo guardado para a metade final do filme: ao chegarem em Manchester, logo depois de Frank ser infectado e alvejado pelos soldados: o que parecia ser um porto seguro para os sobreviventes ou ainda uma resposta para a infecção se mostra na verdade um local ainda mais perigoso para os protagonistas. Ao mostrar um comandante e seus soldados desesperados, Danny Boyle nos faz pensar em como as conseqüências de uma infecção podem ser ainda mais assustadoras. Mais assustador do que uma epidemia que devasta uma grande metrópole em menos de um mês, é a sensação de uma sociedade anárquica que impera logo após a devastação da sociedade. Sensação essa que pode levar, inclusive, a uma degradação moral latente (claramente percebido nos comandados de Henry West), gerando cidadões que não hesitam em utilizar a força para conseguirem o que querem. Observando a situação do mundo atual, vemos que isso não está muito longe da realidade.

Assim, “Extermínio” não é apenas um filme de suspense/terror (com, aliás, um belo trabalho de maquiagem). É, além disso, um bom estudo de como uma sociedade pode se comportar diante de uma situação de total devastação de uma civilização organizada. Isso, somado ao fato de que, em tempos de AIDS, SARS e outros vírus epidêmicos (inclusive com vários criados em laboratório para fins militares), mostra que a situação mostrada no filme é muito mais real do que se imagina, configurando – se numa triste alegoria da atual sociedade.

3/4

Adney Silva

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Memórias (Woody Allen, 1980)

“O que você acha que o Rolls Royce representa?”
“Eu acho que o Rolls Royce representa… o carro”.

É muito fácil compreender o porquê de Memórias ser freqüentemente empurrado ao segundo plano da filmografia de Woody Allen. Absolutamente desnorteado, incompleto, louco e imprevisível, este projeto menor e menos conhecido do grande mestre das neuroses fílmicas brinca o tempo todo com a imagem e suas origens, apresenta personagens que saem de cena no instante seguinte, manda às favas a narrativa cinematográfica e é preenchido ao longo de seus 90 minutos com momentos de puro surrealismo, tudo isso pra ter de explicar mais uma vez uma coisa que deveria ser tema básico de qualquer universidade de cinema: a sétima arte não tem compromisso com nada, nem com coerência, nem com realidade. Nada. É um mundo de puro delírio.

Nada mais sensato do que, ao mesmo tempo, Allen fazer seu filme mais autobiográfico, satírico e exorcizante – levando em conta que se trata de um dos principais responsáveis por popularizar esse descompromisso com a estrutura nesses últimos 30 anos, através de filmes como Annie Hall e A Rosa Púrpura do Cairo, muito evocativos e realistas justamente por seus devaneios, e por isso tão deliciosos. Seu senso de humor atinge aqui o nível mais profundo de acidez, de criatividade, atirando pra todos os lados e sempre acertando – em especial em relação ao cinema, principalmente ao seu próprio, mas também à teorização da arte em geral, questionando desde a falta de compreensão da essência de se ver um filme até a necessidade de se aplicar significados a tudo, de rotular, de ter medo de soltar a imaginação e se deixar levar pela brincadeira – tanto quem produz quanto quem vê.

E é exatamente isso que Allen faz: soltar sua infindável imaginação, sempre emoldurada pela cinematografia impecável de Gordon Willis num glorioso preto-e-branco. O plot é praticamente inexistente, notavelmente o que menos interessa, e pode ser resumido simplesmente pelo fato de estarem passando uma retrospectiva da carreira de um renomado diretor (ele mesmo) de comédias que está começando a fazer dramas (incompreendidos – ele mesmo), e de ele ser convidado a participar e, em meio a isso, dar um pouco da sua visão de cinema ao mesmo tempo em que reflete sobre sua própria carreira, seus relacionamentos amorosos, seu futuro. Mais ou menos algo como Fellini faz em Oito e Meio, mas muito mais interessante, não só por o humor do Allen ser muito mais afiado e menos circense, mas por saber aproveitar todas as possibilidades de se exercitar uma brincadeira metalingüística tão aguçada como essa.

Memórias é cheio de filmes dentro de filme, sonhos, visões, lembranças, sempre desconstruídas, ao invés de montadas. E tem alguns dos momentos mais engraçados já filmados, como as entrevistas com o diretor, as aparições dos fãs mais bizarros que existem (“Me dá um autógrafo?” “Sim”. “Eu nasci de cesariana”; e tantos outros tão ou mais surtados), o encontro com os extraterrestes (eles dando conselhos amorosos ao Allen com seus QI’s de 1800 pontos), além das básicas piadas sobre a natureza humana (o médico que era apaixonado por duas mulheres, resolveu juntar o corpo de uma e o cérebro da outra numa só pra fazer a mulher perfeita e se apaixonou pela outra, feita com os restos), sobre a filosofia (“No fim do meu curso de filosofia tive que responder a um teste de dez questões. Deixei todas em branco. Tirei 100”), sobre vida e morte (a crise existencial semi-emo do protagonista é algo impagável), entre outras coisas.

E poucas vezes um diretor filmou de maneira tão apaixonada uma atriz como Allen naquele plano final de Charlotte Rampling – por incrível que pareça, isso não ocorreu com Mia Farrow ou Diane Keaton -, deitada sob a o chão lendo uma revista, mais um daqueles momentos que só mesmo Woody Allen saberia fotografar, transformando um pequeno gesto praticamente na síntese de tudo o que realmente vale na vida. E logo após, terminar o filme de forma tão espirituosa, cerrando um verdadeiro soco na cara da oposição, só poderia ser coisa de um realizador com domínio completo de seu material.

Como é bom assistir um filme consciente de que o único limite do cinema é a própria falta de limites. Um dos meus preferidos de todo o sempre.

4/4

Daniel Dalpizzolo

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Especial Indiana Jones

Existe um sentimento que poucos conseguem explicar (eu não sou um desses poucos) e que nos conecta indefinidamente a coisas ‘velhas’. Nenhum dos caras da equipe do Multiplot! viveu os anos 30, a ameaça iminente da 2ª Guerra, o fim de uma era em busca do espetáculo puro e simples que se via no cinema (King Kong), enfim… Somos todos crias do final dos anos 70, 80 e alguns do início dos 90. Mas mesmo assim, todos nutrimos especial apreço por um personagem deste momento da história: Indiana Jones. Seu jeito desapegado, sua canalhice e misoginia com a mulherada parecem posturas típicas dos anos 30, mas que encantaram toda uma geração dos anos 80 e 90, época em que a mulher já havia dado seu grito de independência; a humanidade não é mais inocente… época em que objetos como a Arca da Aliança são tidos como mito, mesmo com tantas informações de cunho histórico a seu respeito; época em que o cinema já não tinha muito a ver com o jeito antiquado do herói. E mesmo assim ele foi sucesso, transformado no ícone e símbolo definitivo dessa persona de ‘herói cinematográfico’.

Indiana Jones é velho, é a personificação de uma relíquia da Antiguidade cinematográfica (hoje ainda mais quem em 1981 quando seu primeiro filme chegou às telonas) e por isso mesmo, a chegada de seu novo filme demonstra mais do que nunca a reação da arte cinematográfica contra a “mecanização” de sua própria linguagem, de sua própria expressão…

Inspirados por esse paradoxo entre o ‘novo’ e o ‘velho’, os membros do Multiplot! se reuniram para relembrar os 3 filmes anteriores do herói que trouxe de volta à vida um estilo cinematográfico morto há décadas, envolto em uma embalagem para novos viewers, aqueles acostumados ao motion control ou ao bluescreen (ou aos bits e bytes e CGI de agora). De bônus, o Multiplot! também dá o seu pitaco no novo e controverso filme do herói que, para o bem e para o mal, escancara que aquilo que é velho e antiquado pode muito bem revelar os segredos mais profundos e tenebrosos do coração de qualquer cinéfilo.

Daniel Costa

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