Por fora, um filme com fatos e mais fatos insólitos, de teor muitas vezes constrangedor; outras vezes assustadores, engraçados ou simplesmente incolores, acumulando-se dentro de um grande saco de pesadas placas metálicas, sendo levantado por uma frágil corda, prestes a cair na cabeça do pobre Barry Egan, personagem interpretado de forma surpreendente por Adam Sandler (ele mesmo) nesse curto e introspectivo filme de Paul Thomas Anderson. Por dentro: Um filme sobre a força exercida pelo amor. Filme este que sucedeu “Magnólia”, o que elevaria para a estratosfera as espectativas positivas em torno dele. Afinal, o cara que fez “Magnólia” poderia se superar?
Aparentemente pacato e inofensivo,sendo com isso explorado por tudo e por todos durante o filme (desde a infância, pelo que se é passado), Barry Egan trabalha com… É um pequeno empresário que… Bom, ele trabalha dentro de um galpão, com alguns outros caras, e tem uma mesa e um telefone. Com o que Barry trabalha? Deve ser importante (para ele, ao menos), pois ele vai todos os dias de terno e gravata, mas a impressão que ele nos passa é que nem mesmo ele sabe o que está fazendo ali, com aquele paletó e gravata, vendendo aquelas coisas (desentupidores?) e atendendo os telefonemas assustadores de suas irmãs (são 7, cada uma mais sufocante que a outra – no pior sentido da palavra elevado à sétima potência).
Barry sente-se constantemente pressionado, sob eterna vigilância, como se fosse um pequeno hamster batendo com a cabeça contra as paredes, procurando pela portinha que o levasse até a saída, prestes a explodir a qualquer momento, roendo a parede de madeira vagabunda com os dentes e criando um atalho, como na vez em que quebra todo o banheiro de um restaurante (o responsável pela segurança do local pede para que ele se retire, pois viu o estado em que ficou o banheiro; Barry nega que tenha feito aquilo e então o cara pergunta-lhe porque sua mão estaria sangrando e ele suavemente responde “Eu me cortei com minha faca”. (auto-destruição ou defesa?) Igualmente estranho é quando deixam um piano (um pianinho – ou seria um órgão?), na calçada do lugar onde trabalha, depois de um abrupto acidente de carro que parece ensurdecer o silêncio apático de Barry e sua caneca de chá, café, ou sei lá o quê é que ele consegue enxergar por uma tímida luz se espremendo por uma estreita fresta. Porque ele o trouxe para dentro de seu escritório? “I Dont Know”,termo que parece muito bem definir o que Barry sabe, pra valer, até então.
Depois de muita insistência das irmãs, que o espremem contra a parede sem a menor piedade jogando em sua cara todas as pequenas fraquezas e inseguranças – que elas parecem conhecer muito bem -, Barry vai até certa festa em que todas as irmãs e cunhados se reuniriam. Quando lhe perguntam como está o trabalho, ele se enrola e responde “very food”,quando na verdade queria dizer “very good”, e suas irmãs parecem não ter assunto mais interessante para comentar a não ser as “peripécias” cometidas por Barry (ou seria “sofridas”?) na infância. Começam a lembrar de uma vez em que ele atirou um martelo contra uma porta de vidro e em como ele ficava furioso quando elas o chamavam de gay. “Você é gay agora, Barry?” “I Dont Know”, ele responde, explodindo depois numa fúria incontrolável que o faz quebrar todas as vidraças da cozinha aos pontapés. Um déja vu? Qual seria o problema de Barry? É isso que ele próprio pergunta a um dos seus cunhados, que ele acreditava poder ajudar, por ser médico (era um dentista, na verdade). Barry não sabe como são as outras pessoas, para assim poder diagnosticar qual é o seu problema. E esse pode ser mesmo um problemão.
No mesmo dia em que o piano é deixado na rua e “adotado” por Barry, sua vidinha inócua começa a tomar forma, cor, sabor e tom. Primeiro, ele conhece uma garota chamada Lena (numa atuação da sempre marcante Emily Watson) que faz com que ele ouça barulhinhos diferentes flutuando em sua cabeça. Antes de Lena, porém,o espaço vazio que era sua existência havia sido “sub-preenchido” por uma idéia um tanto quanto ousada, o que parecia provocar nele uma adrenalina até então desconhecida: aproveitando-se de um furo no regulamento de uma promoção de uma empresa aérea, que dava de presente 500 milhas em vôo para cada 10 produtos (código de barra) envolvidos na promoção comprados. Comprando embalagens de pudim, com 4 embalagens cada (um código de barra para cada uma) por 0,99 centavos, Barry conseguiria ganhar muitas milhas, gastando pouco. Começou então a entupir seu escritório com caixas e mais caixas de pudim. Mas para onde Barry viajaria? Fez aquilo pensando no lucro, não na utilidade. Mal sabia que precisava na verdade fugir para bem longe. Havia entrado em uma grande enrascada ao telefonar para um Disk-Sexo e perceber no dia seguinte que o sistema de sexo por telefone com desconhecidas gemendo, roubando de pobres almas solitárias o sustento para si próprias, era na verdade uma camuflagem para uma facção criminosa, que começou a ameaçá-lo frequentemente, pedindo-lhe dinheiro,o que culminou em um assalto violento, em que Barry sai ferido. Não só por fora.
Pra piorar, Lena vai para o Havaí e, com isso, se vai o norte que haviam dado à sua vida. “Preciso comprar mais pudins”. Essa é a decisão de Barry para tentar resolver os problemas e concretizar soluções que lhe foram oferecidas. Compra muitas, muitas, muitas caixas de pudim mesmo! E vai ao Havaí. Lá, liga para uma das irmãs, amiga de Lena, e pede informações de onde ela poderia estar. Como esperado, sua irmã o enche de perguntas indiscretas às quais Barry não estava muito disposto a se expor, tal qual um garotinho negando a todos e a si mesmo que tinha uma namorada. Possesso pela fúria e fortalecido pelo conforto do amor que sentia por Lena (e talvez pela distância, afinal ele estava no Havaí), Barry dessa vez não curva a cabeça pra baixo e cospe no ouvido dela tudo o que sempre esteve entalado por tanto tempo. Raiva, muita raiva. Aquele intenso exorcismo é quebrado para um tom bem mais ameno quando enfim ele consegue encontrar Lena pelo telefone, num hotel. A ansiedade e euforia, por sentir-se mais independente, é tanta que ele parece não querer desperdiçar mais nenhum momento ou pensamento que lhe passe superficialmente pela cabeça, nenhuma dúvida. “Você tem namorado”? “Há quanto tempo não namora”? “Já foi casada”? “Por quanto tempo”? “Onde nasceu”? Tudo ao mesmo tempo, quase sem dar espaço para resposta, querendo entrar pelo telefone, esgueirar-se pelos fios e pular nos braços dela.
O encontro deles no hotel é épico, lindo, cinematográfico. Barry já não se importava em ser visto “de mãos dadas” com uma garotinha. Não era mais tão frágil. Aquela aparente embriaguez superficial de comédias românticas que o fez ir até o Havaí atrás de sua garota era, talvez, o estado mais sólido ao qual Barry já se submetera. Estavam amando, faziam juras de amor: “Quero morder sua bochecha e mastigá-la…” “Quero amassar o seu rosto com um martelo e esmagá-lo, você é tão linda…” “Quero arrancar seus olhos, comê-los, mastigá-los e chupá-los…”. Estavam amando e faziam juras de amor… Da forma deles. Não de uma forma predefinida pelos roteiristas de comédias românticas. Toma coragem e liga para os mafiosos do Tele-Sexo, deixando recado na secretária eletrônica, dizendo que a agressão foi injusta e que quer o dinheiro de volta. E ao voltarem de viagem são atacados pelos mesmos, de forma ainda mais violenta.
Dotado agora de uma força quase que de herói dos quadrinhos, Barry, armado com um pé de cabra, não hesita em derrubar, um a um, todos os capangas, de forma assustadoramente brutal. Barry já não tinha medo dos valentões da escola. Mas ainda não era maduro o suficiente para entender que mulheres gostam de atenção e deixa Lena sozinha no hospital enquanto vai tentar concluir de uma vez por todas o problema com os sacanas que o roubaram. Agressivo, procura pela garota do Tele-Sexo pelo telefone e pede para ela chamar seu chefe (participação brilhante e hilária de Philip Seymor Hoffman), o qual manda se fuder, atiçando a fúria do grande rei da máfia da pornografia. Com a mesma força com que derruba os seus capangas, consegue nocautear o chefão só afirmando, com toda a sinceridade que aprendeu a ter consigo mesmo nos últimos dias, que era um bom homem, e que tinha uma mulher que o fortalecia, e que eles deviam deixa-lo em paz. Voltando de Utah, pede desculpas a Lena, leva o piano (Arrá! Foi por isso que ele o trouxe pra dentro de casa?) para o apartamento dela e vivem assim felizes para sempre, viajando de aeroporto a aeroporto, graças aos pudins.
“Embriagado de Amor”,como eu disse lá no início do primeiro parágrafo, é muita coisa acontecendo ao mesmo tempo para, no fim, ser nada mais nada menos que uma história de amor, uma história de exaltação ao amor, de como esse sentimento tão famigerado e por vezes desgastado nas telas do cinema, na TV e até em nossas vidas pode ainda ser apresentado de forma crível, palpável, sem deixar de ser original. Pode não ser o melhor filme de PTA, afinal não é todo dia que se “pare” um “Magnólia”, mas é certamente um excelente filme, dentro da desgastada categoria “comédia romântica” (odeio rótulos). Aliás,esqueci de tocar num ponto interessante: Adam Sandler e sua atuação impecável. Impecável porque, se ele fez o mesmo personagem de sempre em todos os seus filmes, durante toda a sua carreira (O abobado indefeso e amável que conquista as pessoas por ser… abobado,indefeso e amável)? A resposta, acho, é mais simples do que parece: Adam Sandler estava desta vez trabalhando dentro de um contexto favorável a ele, tornando a natureza de seu personagem algo verossímil, pois nos apresentava o mundo da forma como ele a via. A cada corte brusco no andamento de uma cena, por um daqueles barulhinhos incômodos, e da trilha sonora totalmente atuante do filme, dos sustos repentinos e fatos sem muito nexo (aquele acidente de carro nas primeiras cenas fez meu coração pular até a boca) que acontecem no decorrer de sua trajetória, nos deixando tão atônitos quanto ele, a todo momento. Tudo isso, graças à direção, obviamente, sempre tocante e intensa do PTA, um dos grandes caras do cinema desta última década. Fica difícil não se envolver com o filme, não se sentir incomodado, perdido, atordoado, no limite da razão. Assim como acontece quando nos apaixonamos. Ou quando temos a sensação de que estamos, ao menos.
Preste atenção: Nos barulhinhos, nas cores, na iluminação, na trilha sonora… E no pianinho.
4/4
Rodrigo Jordão
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