Memórias (Woody Allen, 1980)

“O que você acha que o Rolls Royce representa?”
“Eu acho que o Rolls Royce representa… o carro”.

É muito fácil compreender o porquê de Memórias ser freqüentemente empurrado ao segundo plano da filmografia de Woody Allen. Absolutamente desnorteado, incompleto, louco e imprevisível, este projeto menor e menos conhecido do grande mestre das neuroses fílmicas brinca o tempo todo com a imagem e suas origens, apresenta personagens que saem de cena no instante seguinte, manda às favas a narrativa cinematográfica e é preenchido ao longo de seus 90 minutos com momentos de puro surrealismo, tudo isso pra ter de explicar mais uma vez uma coisa que deveria ser tema básico de qualquer universidade de cinema: a sétima arte não tem compromisso com nada, nem com coerência, nem com realidade. Nada. É um mundo de puro delírio.

Nada mais sensato do que, ao mesmo tempo, Allen fazer seu filme mais autobiográfico, satírico e exorcizante – levando em conta que se trata de um dos principais responsáveis por popularizar esse descompromisso com a estrutura nesses últimos 30 anos, através de filmes como Annie Hall e A Rosa Púrpura do Cairo, muito evocativos e realistas justamente por seus devaneios, e por isso tão deliciosos. Seu senso de humor atinge aqui o nível mais profundo de acidez, de criatividade, atirando pra todos os lados e sempre acertando – em especial em relação ao cinema, principalmente ao seu próprio, mas também à teorização da arte em geral, questionando desde a falta de compreensão da essência de se ver um filme até a necessidade de se aplicar significados a tudo, de rotular, de ter medo de soltar a imaginação e se deixar levar pela brincadeira – tanto quem produz quanto quem vê.

E é exatamente isso que Allen faz: soltar sua infindável imaginação, sempre emoldurada pela cinematografia impecável de Gordon Willis num glorioso preto-e-branco. O plot é praticamente inexistente, notavelmente o que menos interessa, e pode ser resumido simplesmente pelo fato de estarem passando uma retrospectiva da carreira de um renomado diretor (ele mesmo) de comédias que está começando a fazer dramas (incompreendidos – ele mesmo), e de ele ser convidado a participar e, em meio a isso, dar um pouco da sua visão de cinema ao mesmo tempo em que reflete sobre sua própria carreira, seus relacionamentos amorosos, seu futuro. Mais ou menos algo como Fellini faz em Oito e Meio, mas muito mais interessante, não só por o humor do Allen ser muito mais afiado e menos circense, mas por saber aproveitar todas as possibilidades de se exercitar uma brincadeira metalingüística tão aguçada como essa.

Memórias é cheio de filmes dentro de filme, sonhos, visões, lembranças, sempre desconstruídas, ao invés de montadas. E tem alguns dos momentos mais engraçados já filmados, como as entrevistas com o diretor, as aparições dos fãs mais bizarros que existem (“Me dá um autógrafo?” “Sim”. “Eu nasci de cesariana”; e tantos outros tão ou mais surtados), o encontro com os extraterrestes (eles dando conselhos amorosos ao Allen com seus QI’s de 1800 pontos), além das básicas piadas sobre a natureza humana (o médico que era apaixonado por duas mulheres, resolveu juntar o corpo de uma e o cérebro da outra numa só pra fazer a mulher perfeita e se apaixonou pela outra, feita com os restos), sobre a filosofia (“No fim do meu curso de filosofia tive que responder a um teste de dez questões. Deixei todas em branco. Tirei 100”), sobre vida e morte (a crise existencial semi-emo do protagonista é algo impagável), entre outras coisas.

E poucas vezes um diretor filmou de maneira tão apaixonada uma atriz como Allen naquele plano final de Charlotte Rampling – por incrível que pareça, isso não ocorreu com Mia Farrow ou Diane Keaton -, deitada sob a o chão lendo uma revista, mais um daqueles momentos que só mesmo Woody Allen saberia fotografar, transformando um pequeno gesto praticamente na síntese de tudo o que realmente vale na vida. E logo após, terminar o filme de forma tão espirituosa, cerrando um verdadeiro soco na cara da oposição, só poderia ser coisa de um realizador com domínio completo de seu material.

Como é bom assistir um filme consciente de que o único limite do cinema é a própria falta de limites. Um dos meus preferidos de todo o sempre.

4/4

Daniel Dalpizzolo

4 Comentários

Arquivado em Resenhas

4 Respostas para “Memórias (Woody Allen, 1980)

  1. Daniel Dalpizzolo

    Opa. Então somos dois, hehe. Legal saber disso.

  2. kid anil

    ô…apaixonante é essa critica! se eu já tava afim de ver, agora verei com gosto! finalmente, ao vivo e sem cores

  3. H.

    Acabei de ver e adorei. Pelo caos e por toda a reflexão que ele propõe. Mas muito também pelas referências a Bergman e principalmente a Fellini, que sei que tu não gosta, mas fascinado pelos filmes dele.

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