Invasores de Corpos (Abel Ferrara, 1993)

Apenas dois fatores fazem de Invasores de Corpos um produto nada típico na carreira de Abel Ferrara. O primeiro diz respeito à origem, já que além de ser seu único trabalho em um estúdio – a Warner – trata-se da refilmagem de uma estória já contada em outras oportunidades pelo cinema (respectivamente em Vampiro de Almas, por Don Siegel, e Os Invasores de Corpos, por Phillip Kaufman). O segundo fica por conta do formato de filmagem, já que também ineditamente desde que estreou com o caótico O Assassino da Furadeira Ferrara faz filmes em Cinemascope, formato que aproveita o máximo possível das laterais da imagem.

Quem conhece o cinema do nova-iorquino pode ficar receoso pelas circunstâncias em que Invasores de Corpos foi realizado, inclusive eu mesmo sempre me mantive cético antes de assisti-lo. Mas bastaram dois ou três minutos e algumas linhas de narração pra que o pé atrás se transformasse em um salto, de felicidade e de surpresa, na mesma medida. Porque a visão de Ferrara sobre o material e sobre os próprios filmes de Siegel e Kaufman é tão extraordinária que eu não consigo acreditar que outro diretor da atualidade tenha tamanha facilidade de se auto-imprimir em projetos tão distintos como ele demonstra em trabalhos aparentemente tão impessoais como esse.

Ferrara trabalhou o filme de gênero em diversas oportunidades e formatos, já viajou pelo policial (O Rei de Nova York, Vício Frenético, Cidade do Medo), pela ficção-científica (New Rose Hotel), pelo horror (The Addiction), pelo metalingüístico (The Blackout, Olhos de Serpente), pelo drama (Maria, O Assassino da Furadeira), mas manteve uma unidade em torno de suas obsessões – que assumem variações importantíssimas – em todas as oportunidades. Os Invasores de Corpos é mais um capítulo de suas aventuras – e dessa vez ainda mais forte do que a maioria das citadas – pelo gênero cinematográfico, e como de costume também não deixa de tratar de temas caros à essência do cineasta.

A primeira grande sacada – e aqui vai uma nota ao nosso querido Roland Emmerich – é deslocar seus personagens a um microcosmo, coisa que não ocorre com tanta intensidade nos anteriores. Aliás, tenho a impressão de que todo filme catástrofe sempre demonstre a necessidade de se apegar a uma definição irredutível de limites, não em seu quadro de personagens ou trama – como faz Emmerich no horroroso O Dia Depois de Amanhã, querendo falar da política mundial e de questões nitidamente universais se apegando à história frágil e fracassada de um pai que corre o país todo para salvar o filho – mas sim na própria construção do ambiente em que vai panfletar seu discurso (de certa forma muitos fazem, mas não conseguem controlá-los).

A seleção desse microcosmo, pra facilitar, não poderia ser mais acertada do que a da base militar de Ferrara, que é pra onde vai a família protagonista – inteligentíssima também a própria desconstrução que ele aos poucos faz dessa instituição, sem rompê-la, simplesmente entregando-a ao processo gradativo de desumanização. É lá que os primeiros indícios de estranheza são verificados e também é nela que as coisas vão começar efetivamente a acontecer. Contrariando o que havia feito em O Rei de Nova York e Vício Frenético, Ferrara substitui sua apreciação por terceiros atos – esses dois particularmente iniciam exatamente onde há o princípio do fim – por um estudo das origens, da instalação do mal, e que curiosamente é concluído no momento em que um diretor comum daria início ao seu ato intermediário e esfregaria as mãos de felicidade por finalmente engatar seu filme.

Invasores de Corpos, ao invés de um olhar que procura invadir o físico, como quase todo filme de Ferrara – curiosamente o próprio Ferrara é o grande invasor de corpos do cinema contemporâneo -, nada mais é do que seu mais trabalhado relato de projeção, no caso a projeção da tragédia, do apocalipse, uma projeção que talvez preencha o espaço deixado a completar em filmes anteriores e que dá deixa à mais genuína sensação de inexatidão. É o cinema de Ferrara feito de dentro pra fora, um nascimento que jamais parte do natural, pelo contrário, nasce do oco, do vão deixado pela transformação dos corpos humanos para a imperialização dos alienígenas – figuras que podem ser consideradas a própria materialização da psicologia de seus protagonistas anteriores, sempre marginalizados, desumanizados.

A noção de apocalipse que toma conta desse estabelecimento de bases transforma Invasores de Corpos em uma obra-prima sem nem mesmo ser necessária uma revisitação aos conceitos de Ferrara, tanto pela noção de estrutura que toda a decorrência do mistério e, principalmente, a forma e o momento em que a conclusão inconclusiva se instala na narrativa apresentam, quanto pela estética particularmente surpreendente. O filme poderia tranquilamente ser exemplo acadêmico pela utilização das extremidades do Cinemascope – ver no cinema deve ter sido um espetáculo -, e mais ainda, um seguidor genuíno no que diz respeito ao ritmo de gradatividade elucidatória de outro extraordinário filme de alien contemporâneo – e outra refilmagem, vale lembrar -, O Enigma de Outro Mundo, de John Carpenter.

Só vence ele, aliás, por um fator determinante. O final de The Thing é particularmente desesperador por discursar pelo pessoal no isolamento (microcosmos), mas o pessoal a serviço do social em que se instala o final feliz mais sem perspectivas de que eu me recordo desde que Wilder filmou Farrapo Humano faz deste Invasores de Corpos um dos momentos mais importantes da ficção-científica em anos – só foi batido pelo próprio Ferrara em New Rose Hotel, um filme que sinceramente acredito que deva ser melhor compreendido daqui a umas quatro décadas. Consegue resolver tão bem o passado e deixar uma incerteza tão assustadora para o futuro que a sensação de desespero acaba superando qualquer outra já transmitida por um filme de invasão.

4/4

Daniel Dalpizzolo

ou: Invasores de Corpos (Abel Ferrara, 1993) – Thiago Duarte – 4/4

4 Comentários

Arquivado em Resenhas

4 Respostas para “Invasores de Corpos (Abel Ferrara, 1993)

  1. Amílcar Figueiredo

    Não vi essa versão do Abel Ferrara (nem sabia da sua existência, pra dizer a verdade), mas a do Siegel é maravilhosa. A do Kaufman também é muito boa, embora eu a tenha conferido há muuuito tempo.

  2. Tive a oportunidade de ver o do Siegel na mesma semana, realmente sensacional. A do Kaufman eu vi há muito tempo atrás, e tbm gostei. A do Ferrara é a obra-prima dos três, mas talvez seja impossível comparar com as outras pq minha adoração vai muito além dos limites do filme – que já é absurdo por si só, claro.

  3. flavio

    gostaria mto de saber onde consigo
    baixar invasores…tenho apenas a versão de 78!!!
    ^^

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