Sob o Domínio do Medo (Straw Dogs – Sam Peckinpah, 1971)

Ou “A Bomba-Relógio”, de Sam Peckinpah – que também poderia ser conhecido como “There Will Be Blood”.

Acredito que ninguém mais no cinema tenha elevado a tamanho grau de intensidade aquela teoria de Hitchcock sobre construção de suspense, do casal jantando e a bomba armada debaixo da mesa, pronta para explodir a qualquer momento – e o espectador tendo ciência disso. Não simplesmente por representar uma espécie de microcosmo de toda a problemática social derivada da hostilidade humana, cada vez mais potencializada pela impaciência e a incompreensão, mas por desde o início a abordagem de Peckinpah, através da histrionicidade dos enquadramentos e da montagem com picos de surtagem altíssimos, transmitir uma sensação de que a televisão pode finalmente explodir em mil fragmentos e perfurar nossa carne.

Straw Dogs segue a mesma linha da obra-prima máxima de Peckinpah, o maior western – e, se bobear, filme – de todos os tempos, The Wild Bunch. A estrutura da ação, aliás, demonstra muito bem que não apenas seu cinema permanecia aliado ao senso de construção narrativa que desenvolvera alguns anos antes. Sua ideologia transgressora havia engrossado – estava ainda mais afiada, impiedosa. E é aqui o ponto em que o diretor resolve chutar as estribeiras e arremessar sua fúria aos quatro cantos do mundo – tanto que, logo em sua seqüência inicial, as crianças, que antes ateavam fogo em um escorpião, agora brincam ao redor de túmulos em um cemitério, numa clara demonstração do poder de subversão da imagem.

A cena diz muito sobre o filme – e sobre a continuidade de discurso que representa. Se Meu Ódio Será Tua Herança registrava o fato, Straw Dogs é uma visão pessimista – e não poderia ser diferente – das conseqüências. A sociedade moderna, que no primeiro encontrava-se em um período de [trans]formação, passa por um momento delicado, à beira da explosão. Não existem mais limites para a vulgaridade, nem mesmo motivações para contorná-la. Homens passam os dias bebendo, sem trabalhar. Mulheres expõem seus peitos e coxas através de costuras abusadas, de pequenos recortes têxteis que ocupam o espaço antes reservado aos longos e trabalhados vestidos. O instinto animalesco está estampado face a face.

O matemático David Sumner, interpretado por Dustin Hoffman, uma peça ainda solta da engrenagem peckinpahkiana, dá início ao filme quando atirado dentro deste universo fora de controle. Mas no cinema do ‘Tio Sam’ não existem heróis. Vivendo alienado pelo egoísmo de não querer ver, o homem acaba se fechando em um universo próprio, do qual exclui até mesmo sua esposa, que em muitos momentos parece implorar pela companhia do marido – sem jamais ter seus esforços retribuídos. O distanciamento registrado nesta relação conjugal, aliás, funciona como um dos principais meios de se chegar onde finalmente o filme pretende: qual o limite desta situação catártica?

Antes de a resposta, uma pequena grande mensagem de Peckinpah a respeito do próprio instinto animalesco – e natural – humano, finalmente chegar, o diretor aproveita para construir um dos filmes de suspense mais perturbadores de que se tem notícia, partindo do insinuante para o gráfico em questão de segundos. Aliás, Straw Dogs é uma aula de montagem justamente quando pretende transformar sentimentos e significados, como em sua seqüência mais tensa e sufocante, na qual, enquanto David efetua pela primeira vez uma ação plenamente machista, a caça, sua mulher é estuprada em seu próprio sofá e, pior, passa a gostar da coisa durante o ato – e logo depois paga por isso, sendo estuprada novamente depois de gozar, por um outro homem.

A cena em questão é taxada por muitos de repulsiva, machista, doentia, mas nada poderia construir um diálogo tão forte com o discurso principal do filme do que a crueza com a qual a ação é fotografada. É de deixar os adoradores de certo filminho de Gaspar Noé com gosto de sangue na boca, implorando pelo fim. E a brincadeira de Peckinpah com a imagem chega ao extremo limite na cena da quermesse, quando o estupro é retomado através de flashbacks intercalados com a ação vigente e, junto dela, passa a transmitir novas – e antes inimagináveis – sensações. E é a partir deste ponto que as coisas começam a tomar o rumo desenhado através de cada frame antes projetado, que desemboca em um final absolutamente genial – e inenarrável.

E a bomba-relógio explode, resultado de um processo de equívocos coletivos.

4/4

Daniel Dalpizzolo

ou: Sob o Domínio do Medo (Sam Peckinpah, 1971) – Adney Silva – 4/4

5 Comentários

Arquivado em Resenhas

5 Respostas para “Sob o Domínio do Medo (Straw Dogs – Sam Peckinpah, 1971)

  1. Esse filme merece não só uma resenha, mas toda uma tese em cima dele. É como você disse: tudo no filme, desde o primeiro frame, se encaminha para a explosão de fúria animalesca e sem limites, para a catarse do que há de mais irracional, instintivo e, por que não dizer, mais sujo, asqueroso e lamaçento do que é referente ao ser humano. Para mim, é a obra-prima do Tio-Sam.

    Aliás, ótima resenha!!!

  2. Caio Lucas

    “… resultado de um processo de equívocos coletivos.”

    Perfeito! Só acho que climão mais intenso podia ter sido formado até a derrocada final. O que resultaria no seu maior filme longe dos westerns.

    Cena de estupro mais genial está em Alfredo Garcia, com a mesma formulação, porém Warren Oates percebe sua mulher com desejo e finge não ver e sentir aquilo.

  3. Benedito Batista de Souza

    Quero baixar o filme “Sob o Dominio do Medo” mas só encontro comentários sobre o mesmo. Como faço para fazer o Download do filme. Pode me ajudar?
    obrigado. Aguardo resposta.

  4. K. Lincoln

    vai por torrent cara.É só baixar o bitcomet ou similares…

  5. Caro Benedito, tambem estou querendo assistir esse filme. Adoraria saber quem tem o DVD para comprar pára que o mesmo faça companhia, a “Meu Odio Será Tua Herança” e “Cruz de Ferro” na minha DVDteca e no futuro a outras obras desse genial diretor (infelizmente não tão conhecido pelo grande público).

    abç

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