Mãe das Lágrimas (Dario Argento, 2007)

La Terza Madre é tão romântico no que diz respeito ao seu próprio universo e imagens que em certos momentos muito mais se assemelha a um turbilhão errático de Ferrara do que a um filme apocalíptico fantástico italiano – a cena do banho de Ásia Argento e seu primeiro encontro com a mãe são dignas do Cinema do ítalo-americano -, mas isso de maneira alguma representa uma possível troca de identidade de Dario Argento. Pelo contrário. É fruto da consciência.

Mãe das Lágrimas, o filme, veio ao mundo como complemento às duas partes anteriores da mitologia de Argento sobre as três bruxas – Mater Suspiriorum, Mater Tenebrarum e Mater Lacrimarum – mas em nenhum momento procura remeter, em estrutura ou discurso, aos anteriores Suspiria e Mansão do Inferno. Ao contrário do que havia feito anos antes em Sleepless, uma releitura do giallo setentista sob a ótica do cinema daquela época, Argento filma através das características cinematográficas do século XXI sua visão do filme-B moderno, um termo que na realidade se perdeu entre diferentes definições e hoje representa muito mais qualidade do que forma – vale resgatar que “b-movies” é uma definição utilizada desde o período do sistema de estúdios hollywoodiano e era utilizada para denominar os filmes feitos para passar na aba das superproduções, já que não tinham estrelas nem publicidade suficientes para conseguirem se vender sozinhos.

Como um legítimo filme-B, Mãe das Lágrimas é paupérrimo do ponto de vista técnico, preenchido por efeitos bastante ruins se comparados a qualquer produto cinematográfico atual – os elementos digitais jamais foram companheiros do diretor, o que pode ser notado também em Síndrome de Stendhal – e feito com baixíssimo custo, da mesma forma como qualquer outro filme de Argento. Mas os tempos são outros, e na visão de Dario este é o universo do verdadeiro filme-B contemporâneo, sem o jogo de luz e o misticismo que marcaram sua fase mais celebrada e recheado de poluição visual. É o tempo da globalização, do engarrafamento, da correria, do coletivo à frente do pessoal – assim como o filme, o primeiro da trilogia que se passa fora da esfera mitológica da mansão construída para a bruxa, fixando junto ao drama pessoal a histeria social.

Não é nenhuma coincidência, portanto, que ao contrário dos protagonistas anteriores, a personagem de Asia Argento seja muito mais do que uma simples curiosa pela mitologia – diferentemente da garota de Suspiria e do paspalho que assume a comissão de frente na metade final de Inferno, Asia não escolhe participar de toda a loucura, entra no jogo simplesmente para salvar o mundo. Afinal, estamos aqui para resolver uma trindade mitológica, ninguém melhor do que ela – a grande definição da heroína moderna e ao mesmo tempo a maior vampira do século XXI – percorrendo uma elegia à própria espécie para dar o ponto final ao apocalipse promovido pelas mulheres.

Foram poucos os cineastas que olharam com tanto carinho aos seus heróis, e Argento faz isso de maneira tão surpreendentemente romântica que alcança um tom de ternura absoluto em certos momentos, contrastando com a vastidão do feitiço macabro lançado pela Mater sobre uma Roma em devaneios – e propulsora de alguns dos momentos de morte mais intensos e sangrentos da filmografia diabólica de Argento. Asia alcança a invisibilidade, é protegida pelo espírito materno, recebe pistas de outro mundo e até se permite um banho pra lá de sensual debaixo do manto de morte e sangue que cobre a cidade, momentos antes de partir para a batalha definitiva na mansão de orgias escatológicas que serve de quartel para seu algoz, recheada de bruxas semi-nuas e moçoilas peitudas.

Dario Argento, em Mãe das Lágrimas, não apenas conclui sua trilogia como também quebra a barreira entre o cinema fantástico da década de 1970 e o apocalipse estudado pelo cinema do século XXI. Mais do que isso, bebe de fontes externas para voltar sua mitologia à adoração em diferentes esferas. Assim como Ferrara em New Rose Hotel e Assayas em Boarding Gate, Argento celebra o caos sentenciado pelo corpo feminino mas defende em sua plenitude a grande mistificação da mulher contemporânea, pelo bem ou pelo mal. Não poderia haver motivo maior para tamanha gargalhada, não é Asia?

4/4

Daniel Dalpizzolo

1 comentário

Arquivado em Resenhas

Uma resposta para “Mãe das Lágrimas (Dario Argento, 2007)

  1. Destaque apenas para Asia Argento e a “expansão” da maldade da bruxa que atinge toda a população da cidade de Roma. Só não é pior que “Mansão do Inferno”.

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