Lolita (Stanley Kubrick, 1962)

Lançado em 1962, Lolita é o sexto longa da carreira de Stanley Kubrick. Após sua experiência em Spartacus, tendo que brigar com Kirk Douglas por controle criativo, Kubrick decidiu que produziria seus próprios filmes. Lolita foi o primeiro, e nesse contexto, ganha importância por ser o primeiro passo do diretor em direção ao ideal de criar o seu próprio cinema. É interessante ainda destacar que houve problemas no roteiro, na seleção do elenco e na edição, tudo em função do tema polêmico (Cary Grant teria recusado indignado a oferta do papel principal). E é ainda em Lolita que se encontram pela primeira vez dois gênios, Kubrick e Peter Sellers, que juntos criariam, dois anos mais tarde, talvez a maior atuação do cinema. Sem mais delongas, com vocês, Lolita:

Lolita (Lolita, 1962)

Stanley Kubrick dizia gostar de adaptar livros medíocres, pois eles rendiam bons filmes. Assim sendo, não chega a surpreender a ironia de que o livro mais célebre adaptado para o cinema pelo diretor tenha resultado em sua obra de menor prestígio – com as possíveis exceções de Fear and Desire e A Morte Passou por Perto, obras do início da carreira do diretor. Trata-se da adaptação do romance Lolita, escrito pelo russo Vladmir Nabokov, narrando a estória do professor Humpert Humpert, que se apaixona pela personagem título, uma menina de apenas 14 anos.

O primeiro passo para analisar Lolita deve ser, então, buscar razões com que se possa justificar o motivo de ser essa a obra que menos agrada o público. O motivo mais óbvio é o tema, bastante indigesto. Afinal, todo ser humano tem um limite de tolerância para com a torpeza da vida e da humanidade, e o sofrimento de crianças e jovens, em especial por motivos sexuais, excede esse limite para muita gente. Isso pode ser especialmente verdadeiro para espectadores conservadores e para pais e mães que vejam na menina Lolita suas próprias crianças. Com relação aos cinéfilos, em especial os fãs do diretor, o motivo anterior perde força, e o que provavelmente mais pesa contra Lolita é a comparação com os outros filmes de Kubrick. É provável que, ao assistir a esse filme, se tenha em mente a ousadia narrativa e visual dos clássicos 2001 – Uma Odisséia no Espaço e Laranja Mecânica, e Lolita, bem menos ousado e inovador, sai perdendo.

Não obstante, nada disso significa tratar-se de uma obra pequena ou medíocre. É possível notar a mão talentosa de Kubrick em diversas seqüências. Tomem-se como exemplos a conversa entre Humpert e o psicólogo da escola de Lolita, o encontro de Humpert e de Clare Quilty na varanda do hotel e a perseguição na auto-estrada, todas elas realizadas com maestria, criando tensão de uma forma que poucos diretores conseguiriam extrair de seqüências tão “simples”. As duas primeiras cenas citadas acontecem em ambientes escuros e claustrofóbicos, e contrapõem os personagens de maneira que o resultado é o que mais perto se poderia chegar de um duelo de faroeste expressionista. A seqüência da perseguição de carros, além de tecnicamente excelente, é também emblemática, pois marca o ponto a partir do qual o pouco controle que ainda restava a Humpert sobre sua vida termina. A partir dali, os acontecimentos o carregam, sem que ele consiga impedi-los, até que o personagem chegue a seu trágico destino.

Mais interessante do que os méritos técnicos, porém, são os questionamentos que a obra levanta e os temas que ela aborda. A segunda versão cinematográfica para o romance dá especial atenção para o motivo pelo qual Humpert se apaixona por Lolita – havia tido, na juventude, uma namoradinha que faleceu. A versão de Kubrick não perde tempo justificando os motivos do personagem. O que importa é o comportamento obsessivo de Humpert, sua degradação mental, a perda do seu caráter, e eventualmente, a maneira como a obsessão de Humpert destrói todos os que entram em contato com ela. Kubrick transforma uma vaga noção de amor que o personagem teria pela menina, e o arremessa em um redemoinho que inicialmente, por ser muito amplo, não dá a impressão de estar puxando Humpert para o fundo. Pois o amor tem mesmo uma faceta obsessiva, que obviamente não se manifesta em todos na forma corrosiva que destrói Humpert, mas que é capaz de, em alguns momentos, trazer à tona o pior de cada pessoa. Quando o amor é sadio, porém, essa exposição é seguida de compreensão e o que termina por ficar à superfície mesmo é o que cada um tem de melhor. Isso não ocorre com o personagem principal de Lolita por dois motivos. O primeiro é óbvio, sua própria natureza instável. O segundo se refere a sua amada, e ao comportamento dela em relação a ele.

E surge disso um outro questionamento essencial da obra: até que ponto existe mesmo a tal inocência da juventude. A personagem título não é exatamente uma criança, mas para a época em que o romance foi escrito, ainda deveria estar na idade da inocência. Não obstante, ela manipula e engana Humpert seguidamente. Seria apenas um reflexo da presença negativa dele e da proximidade entre os dois? Teria ela consciência das regras que infringia – não apenas leis, mas também regras sociais? Considerando que há um debate sempre acirrado em relação à diminuição da maioridade penal no Brasil, Lolita é uma obra que, mesmo após mais de quatro décadas, não deixa de ser atual. Pois se no filme o catalisador da “maldade” da personagem é o sexo, na vida real são a miséria e o crime, mas que diferença existe mesmo entre Lolita e os menores envolvidos no tráfico de drogas? Seria possível evitar a virada deles para o caminho do crime apenas retirando a presença negativa que os cerca? E se sim, por que é que jovens de classe média também se envolvem com o mundo do crime?

Enfim, quando se pensa não apenas no caráter atemporal de sentimentos como amor e obsessão, mas na criminalidade infantil e nos casos de pedofilia, envolvendo até membros do clero, percebe-se que é pouco provável que Lolita deixe de ser uma obra atual. E isso é provavelmente a maior conquista a que uma obra de arte pode almejar, pois críticos e opiniões vêm e vão, mas quem dá a última palavra é sempre o tempo. A única maneira digna de terminar essa resenha é lembrar a memorável atuação de Peter Sellers (ou mais uma delas) e dizer que, apesar de ser um dos filmes menos prestigiados do diretor, Lolita tem um mundo a oferecer ao espectador, se ele tiver estômago para embarcar na jornada. Em uma palavra, é Kubrick.

3/4

Marcelo Dillenburg

7 Comentários

Arquivado em Resenhas

7 Respostas para “Lolita (Stanley Kubrick, 1962)

  1. Caio Lucas

    Quando comecei a procurar os filmes do Kubrick (bem no começo da cinefilia), pouco ouvia falar de “Lolita”. Isso não diminuiu meu interesse, só aumentou. Até que um dia tive a chance, era o único do mestre que me faltava, e como sempre me surpreendi. Era bem mais do que todos me diziam.

  2. Pois é, Lucas, Lolita já conta com um certo estigma de filme menor. Mas o menor filme do Kubrick (que na minha opinião não é Lolita) é melhor que muito filme de muito diretor grandão.

    Pessoalmente, vejo Lolita como um filme que tem muito a oferecer, tanto na forma quanto no conteúdo.

  3. Amanda

    Eu gostei, vi a bastante tempo e me surpreendi com a forma narrativa dele. E também estranhei por ser em preto e branco, isso parece remeter ao estilo.

  4. expirados.blogspot

    Uma boa adaptação da obra, que fica na minha lista de melhores. O Diretor consegiu “adaptar” a obra e ficou bem legal, talvez não seja mesmo o melhor dele, porem isso não desmerece elogios ao filme.
    * Bom comentário o seu =D

  5. Gosto muito da versão do Kubrick e posso até dizer que é meu filme favorito dele, pois trata de um tema bastante delicado, mas de uma forma que não choca tanto visualmente como Laranja Mecânica, por exemplo. A propósito, excelente site!

  6. Milena Ribeiro

    Gostei muito das suas colocações! O filme é muito bom e fiel ao livro, principalmente no que toca ao relacionamente entre Humbert e Lolita. De fato, no livro toda a relação física dos dois é subentendida.
    Ah, o nome da personagem é Humbert.

    :)

Deixe um comentário