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O Selvagem da Motocicleta (Francis Ford Coppola, 1983)

Mais do que uma obra extremamente pessoal, O Selvagem da Motocicleta, de Francis Ford Coppola, é um belíssimo exercício de estilo com a marca registrada desse grande diretor. Preenchido por constantes simbolismos, normalmente perspicazes, o filme impressiona por conseguir captar com profunda energia e devoção, resultantes da proximidade emocional do diretor com a obra, os sonhos e a realidade de uma geração de jovens que, embora vivesse em uma época distinta, avançada, mantinha o idealismo e as perspectivas (ou a falta delas) da geração Beat dos anos 50, conhecida por revolucionar, através da literatura, a cultura monótona e conformista que vinha sendo estagnada até então na sociedade pós-guerra.

No filme, Matt Dillon interpreta um jovem que, após ser abandonado por seu irmão e ídolo, uma espécie de mito de sua cidade (“Motorcycle Boy”, interpretado com brilhantismo por Mickey Rourke), resolve tentar fazer sua fama em pequenas brigas de rua, na esperança de que os velhos tempos da gangue de seu irmão retornem. Quem retorna, porém, é seu próprio irmão, que havia deixado a cidade para conhecer a Califórnia, mergulhado em questões existenciais, e tendo que lidar com pequenos traumas de sua vida. Com isso, abre-se um leque de questionamentos entre os dois indivíduos, e todas as pessoas que os cercam, enquanto eles se divertem bebendo e transando livremente em seu submundo de sexo, drogas e rock n’ roll.

Invariavelmente, a grande menção que se pode fazer ao melhor trabalho de Coppola em sua fase menos grandiloqüente, mais pessoal, diz respeito ao tratamento visual que dá forma à ação. Fotografado em preto-e-branco, numa referência à visão daltônica de “Motorcycle Boy” (apenas um dos diversos simbolismos aplicados por Coppola), O Selvagem da Motocicleta comprova que, ao criar uma ligação entre os truques e resoluções visuais adotados para a composição de uma cena e o seu discurso, não só teremos uma maior complexidade narrativa como também, conseqüentemente, uma motivação a mais para a existência de tal elemento estilizado, tornando-o, assim, indispensável para o resultado final – e não apenas um simples exercício de conceitos.

Falo isso porque, ao comparar, por exemplo, os elementos coloridos inseridos nesse filme de Coppola (os “peixes de briga”, utilizados como metáfora para definir a própria personalidade do personagem de Matt Dillon, e a fantástica cena na qual ele enxerga seu reflexo a cores no vidro traseiro da viatura, demonstração mais interessante desse paralelo – a exemplo dos tais “peixes de briga”, o personagem, ao ver-se refletido no vidro do carro, tenta brigar com seu próprio reflexo), com a garotinha de vestido vermelho do épico “A Lista de Schindler”, de Steven Spielberg, é inegável a sensação de frustração sentida ao percebermos que, ao contrário dos citados significados presentes na obra de Coppola, a cena da obra de Spielberg não passa de um mero artifício superficial que visa, única e exclusivamente, provocar comoção e lágrimas no espectador – ou chamá-lo de idiota.

Mas é indispensável salientar que, apesar de todo o estiloso preciosismo técnico, Selvagem da Motocicleta ainda contém alguns pontos negativos. Talvez por ser sua obra mais pessoal, Coppola construiu um filme que pode provocar estranheza em muitas pessoas. Pouco antes de chegar ao seu maravilhoso terceiro ato, o ritmo da obra acaba oscilando, transformando algumas passagens em um verdadeiro concurso de tédio. Além disso, outros aspectos, em especial a trilha sonora, vez por outra parecem soar relativamente deslocados dos outros elementos de cena (algumas músicas dão a impressão de quem entrarão constantemente em conflito com a imagem, deixando uma sensação de que tenham sido inseridas por alguém que nem havia tomado conhecimento de qual cena estava musicando).

Apesar de alguns pequenos descuidos, O Selvagem da Motocicleta tem seu lugar garantido entre as mais interessantes obras de Coppola – um diretor que vinha da revolução cinematográfica dos anos 70 e sempre arranja alguma forma de imprimir alguns cacoetes em seus filmes, e que, embora tenha uma carreira bastante irregular (é inacreditável que seu péssimo segmento de Contos de Nova York e Apocalypse Now, a grande obra-prima do cinema de guerra, tenham sido filmados pela mesma pessoa), terá para sempre lugar garantido na história do cinema. O filme em questão é o melhor de seus projetos menores, onde conseguiu unificar duas características naturalmente opostas, porém sempre interessantes quando andam juntas – e bem condensadas: simplicidade e complexidade. Resquícios da genialidade em um diretor que, logo após, viria a afundar sua carreira em um profundo poço de fracasso.

3/4

Daniel Dalpizzolo

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