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A.I.: Inteligência Artificial (Steven Spielberg, 2001)

“…e Deus não criou Adão para que ele O amasse?”

Stanley Kubrick foi um cineasta impecável. Nunca temeu criticar duramente a sociedade em seus filmes, realizando estudos complexos sobre o ser humano, suas motivações e ambições, seu papel no contexto social em que se encontra e, ainda mais, o que estabelece a interação entre os homens, o diálogo ou a falta dele, a violência, o medo, o sexo, a demência e a cegueira que praticamente imperam na maior parte de seus personagens centrais. O homem que Kubrick expõe na tela é dúbio, capaz de atos extremos para justificar sua condição e que, muitas vezes, reflete o desprezo do cineasta pela coletividade burra e limitada que se constrói sobre alicerces falsos que mais funcionam como auto-engano. Coletividade esta, sempre disposta a mentir para acreditar nela própria. Foi este cineasta quem desenvolveu a idéia de trabalhar a funcionalidade do amor, a possibilidade de criá-lo e desenvolvê-lo pelas mãos do próprio homem. Não é o amor a força motriz que impulsiona o homem tornando a sociedade em si, supostamente, baseada nele? Por que não trabalhar em cima de conceitos como este, muitas vezes tão excludentes e ao mesmo tempo fascinantes? Por que não tentar imaginar como seria um futuro onde o amor pudesse ser fabricado e entregue na porta de casa? E como lidar com este amor que foi projetado para você mesmo, sua responsabilidade e as conseqüências de suas atitudes? Foi nesse campo claramente assustador que foi concebida a idéia para A.I.: Inteligência Artificial, filme que Stanley Kubrick não dirigiu. E este, sem sombra de dúvidas, foi o único erro de sua carreira.
 
Ao dividir a idéia de A.I. com Steven Spielberg, Kubrick buscou apoio para a realização de um projeto ambicioso, que envolveria recursos bastante desenvolvidos e ninguém mais apropriado que Spielberg para ajudá-lo nesta empreitada, ainda mais depois dos avanços tecnológicos promovidos graças a Jurassic Park. Além disso, Kubrick era um diretor muito meticuloso e demorava bastante para concluir um projeto. Neste caso isso seria fatal, já que ele dependia de atores de verdade (a partir do momento em que decidiu não utilizar robôs nos papéis principais) e a rápida evolução das técnicas acabariam sempre por deixar as que ele empregasse ultrapassadas ao longo das filmagens, o que acarretaria num constante processo de mudanças, refilmagens e novas idéias. Isso seria inviável do ponto de vista orçamentário e, possivelmente, o filme nunca veria a luz do dia. Talvez pensando nisso tudo Kubrick tenha passado o projeto para Spielberg dirigir, dizendo que este seria mais adequado para comandar o filme e que ele, Kubrick, ficaria a cargo da produção. Fora essa possibilidade, não consigo visualizar outra hipótese para essa troca de funções, já que ela foi a responsável pelo desesperador desfecho para uma idéia tão fascinante. Claro que existem aqueles que irão argumentar que Kubrick faleceu após as filmagens de De Olhos Bem Fechados e que é impossível saber qual seria seu peso no resultado final de A.I., mas uma coisa é possível assegurar: Não se pode ter certeza de que o filme viesse a se tornar mais uma obra-prima de Kubrick caso ele o tivesse dirigido (haja visto que muitos dos conceitos questionáveis do filme são atribuídos a ele), mas certamente faria um projeto muito diferente. E cínico.

A.I. começa a sua derrocada em etapas, sendo que cada ato é mais fatídico que o anterior. O primeiro se inicia bem, a partir de uma narração em off pontuando a situação do planeta num futuro não muito distante, depois de ter sido castigado por uma tragédia natural de proporções catastróficas, responsável por mudanças drásticas na sociedade como um todo. A narração é feita enquanto são mostradas imagens de um mar revolto, estabelecendo assim um paralelo da importância da água que, além de ser fonte de vida, pode também ser responsável por tomá-la. O futuro que se vê é assustador, onde a humanidade é obrigada a controlar a taxa de natalidade para que os recursos não se esgotem e os robôs surgem como solução aos problemas de mão-de-obra para, em seguida, soarem como alternativa ao próprio ser humano. Todo esse contexto é interessante e no início do filme é pontuado de forma sombria, mostrando o homem querendo agir como se fosse Deus, a ponto de se achar capaz de criar o amor artificial. Mas até onde isso é possível e como lidar com as conseqüências de uma experiência tão ousada é o que propõe Spielberg… a princípio. E é aí então que ele se perde. As questões mais pertinentes do conceito inicial são mal exploradas pelo fraquíssimo roteiro, escrito pelo próprio Steven Spielberg, perdendo inúmeras chances de trabalhar assuntos capazes de gerar polêmica. No prólogo é citado, por exemplo, o controle das sociedades mais ricas sobre a gravidez mas o filme não esboça nenhum tipo de análise quanto a este aspecto e acaba confundindo o espectador em uma determinada cena, repleta de crianças presentes. Sendo assim, como funciona a tal sanção da gravidez? E se ela fosse muito drástica, não seria um risco á humanidade que, assim, estaria colocando a própria espécie em perigo de extinção? Spielberg não se atem a esse detalhe e perde a oportunidade de fazer uma discussão importante. E não é só, ele se esquece de dimensionar a real importância prática dos robôs, deixando por retratá-los mais a frente como marginais na sociedade (ora, a sociedade não dependia deles?).

A adaptação de David à família e desta a ele é o foco do primeiro ato que se revela muito raso, repleto de cenas descartáveis, como aquela em que David intercepta uma ligação telefônica. Não existe a menor necessidade de uma cena como esta se não a de Spielberg se divertir um pouquinho e gerar algumas risadas (?) no público. Teria sido mais proveitoso ele se concentrar na elaboração de diálogos mais ricos e que não fizessem até mesmo cenas de apelo dramático mais intenso (como a que Mônica e Henry discutem se ficam ou não com o novo membro da família e mais parecem não dizer coisa alguma além de repetições vazias) soarem falsas e dispensáveis. Para cada vez que Spielberg vislumbra recuperar o bom senso dando um ar mais frio a seu filme (a cena do jantar em que David e Martin competem diante de uma tigela de espinafre e que termina com David “quebrando” é muito satisfatória), ele volta á brevidade de sua leitura, se prendendo em constrangedoras passagens da relação entre a família e o menino, tudo para deixar bem claro o esforço que fazem para incluí-lo no seio familiar. Esforço este que se mostra pífio já que assim que o filho legítimo retorna ao convívio (sem nenhuma explicação) o interesse do casal por David quase se desintegra.

Haley Joel Osment se sai bem na pele de David, alterando gradativamente os traços do menino-robô, fazendo com que ele fique mais humano com o decorrer da projeção (ainda que em momento algum tenha apelado pela artificialidade extrema). No entanto, o personagem varia muito em sua linha de construção durante o primeiro ato, o que mais parece ser um equívoco na direção de Spielberg que, para obter maior dramaticidade, certamente instruiu seus atores a “carregar” no teor de emoção, ainda que seus personagens (principalmente David) não comportassem ainda tal linha de texto. O mesmo equívoco pontua todo o trabalho de Frances O’Connor, que é baseado no apelo pela piedade e compaixão do espectador, a fim de manipulá-lo para que sua personagem não seja odiada, mesmo depois de abandonar David. E assim que esse ato monstruoso é consumado, o filme entra na segunda parte (ou seria capítulo?): a fábula infantil.

A busca de David pela Fada Azul é apresentada com uma ingenuidade que ultrapassa a barreira do termo “infantil”. David enfrenta monstros (os caçadores de Mecas defeituosos), lugares hostis (o Mercado de Peles) e encontra uma companhia para sua jornada, o carismático Gigolô Joe. Aliás, é somente a isso que se presta Jude Law em todo filme, emprestar charme ao personagem já que este jamais é desenvolvido pelo roteiro e não passa de um mero enfeite. E quando existe a intenção de fazer de Gigolô Joe um personagem tridimensional, a tentativa se revela tardia e frustrada, atingindo o ponto mais alto na embaraçosa última fala do personagem: “Eu existo, eu existia… (I am, I was…)”.

É nessa etapa que Spielberg lança mão de mais recursos técnicos e nem mesmo este quesito, que na maior parte das vezes é notável em seus filmes, está isenta de falhas. John Williams deixa sua trilha sonora escorrer pelas mãos ao abandonar o tom soturno que dá no início em troca dos melosos acordes de piano que pontuam o final (o que na verdade serve perfeitamente ao propósito de Spielberg em arrancar o choro da platéia a qualquer custo). A fotografia de Janusz Kaminski se perde na super iluminação, ainda mais acentuada no ato final, deixando escapar a possibilidade de retratar a ambigüidade e frieza do ambiente, usando luz excessiva ao invés de sombras. Até mesmo a direção de arte sai chamuscada já que, mesmo que o trabalho seja admirável no que concerne à beleza e plasticidade das criações, é também vazio e perdido, sem seguir um conceito pré-delineado. Rouge City, por exemplo, é uma mistura maluca de Las Vegas, Tóquio e Londres pós-moderna e esquizofrênica, mas sem nenhum tipo de conexão lógica. O Mercado de Peles é simplesmente um lugar escuro que perde a chance de ser lúgubre, mesmo com suas bandas de rock pesado e motos que imitam cães (!). E por fim a Nova Iorque inundada é incapaz de causar espanto (ainda que seja um trabalho bem realizado através de maquete e computação gráfica), já que qualquer filme catástrofe dos anos 90 utiliza técnicas similares e com resultados parecidos. A equipe de Stan Winston e a ILM fazem um ótimo trabalho no desenvolvimento de diversos tipos de robôs Meca, os únicos capazes de causar certo fascínio ao longo da projeção. O mesmo não pode ser dito quanto à animação criada para dar vida ao Dr. Know, que é bastante infantil em todos os traços, causando a maior das quebras durante todo o filme ao surgir leve e alegre em meio às luzes frenéticas de Rouge City (que supostamente deveria ser um local marginal).

A.I. ainda poderia ter chance de ser salvo do desastre total caso Spielberg reconhecesse a natureza cruel da história. Ao invés disso, o cineasta ressalta ainda mais a importância da jornada de David, da busca pelos sonhos, conduzindo um ato final dos mais apelativos e dramaticamente constrangedores dos últimos tempos. O terceiro ato é o tiro de misericórdia (apesar de se arrastar por longos minutos e infinitas reviravoltas) e por conta disso, Spielberg assina em baixo na constatação de que sua visão da história é inacreditavelmente inocente e piegas. O amor que motiva David ao longo do filme é incondicional e ao mesmo tempo falso, já que ele foi programado para tanto. A mãe por quem ele tanto busca é na verdade uma mulher egoísta, capaz de enganá-lo simulando um passeio quando na verdade queria se desfazer dele e mesmo que tente salvá-lo na última hora, acaba não o fazendo (sua intenção não abona sua atitude) e se conformando com o destino incerto de quem um dia foi para ela como seu filho. O pai em momento algum demonstra qualquer tipo de afeto por David, sendo que o ato de levar o menino para casa não passou da própria tentativa de ficar bem, já que não conseguia mais ver a mulher definhar por conta da ausência do filho.

E até mesmo o Professor Hobby (William Hurt) pode ser considerado o ápice do egoísmo, já que fez David à imagem e semelhança de seu filho perdido, numa necessidade doentia de ter de volta a família, sem com isso se importar com o sentimento que sua criação viesse a desenvolver. David manterá o mesmo estado físico sempre, não se desenvolverá, e ninguém se preocupa com o que fará quando ele já não suprir as necessidades alheias. No fim das contas, o único personagem legítimo é Martin, que não deixa de expressar sua insatisfação com relação a David. Somente ele não engana o espectador se fazendo de bom quando na verdade é mau (conceitos específicos de toda história pra criança), escondendo sentimentos e forjando atitudes.

Num mundo como este era de se esperar que o cinismo implícito em cada um desses seres humanos fosse expressado com o mínimo de seriedade e sobriedade, mas Spielberg se contradiz ao justificar todos os atos em nome do amor. Só não sei onde ele viu amor nessa história sobre um ser artificial, programado para sentir o que ninguém ao redor parece perceber. A.I. está recheado de “vilões” disfarçados de “mocinhos”; poderia perfeitamente ser a história da Chapeuzinho Vermelho e do Lobo Mau, além do Pinóquio, da Fada Azul, do Mágico de Oz…

Preste atenção: no plano mais interessante executado por Spielberg durante toda a projeção (praticamente o único), onde ele combina o uso da grua e do travelling na passagem em que Teddy (o urso de David) é colocado na caixa.

1/4

Thiago Macêdo Correia

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