O Testamento de Deus (Stars in My Crown – Jacques Tourneur, 1950)

Se considerarmos o subvalorizado Jacques Tourneur como o maior contador de histórias fantásticas da velha Hollywood, um de seus melhores filmes, O Testamento de Deus, parece a primeira vista ser justamente um contraponto a este rótulo de cineasta do inverossímil no qual foi embalado depois de filmaços como A Morta Viva e A Noite do Demônio, seus melhores trabalhos, essencialmente dependentes da ficção extremizada. De veia realista e estruturado sob uma clássica fórmula narrativa de westerns dramáticos de John Ford, é um filme sobre a vida em comunidades, e principalmente sobre a influência do meio na construção da visão de mundo e de valores de um homem, que resgata através de suas memórias parte do cotidiano da pequena cidade em que cresceu e da qual guarda diversas lembranças, tanto boas quanto ruins.

Ao mesmo tempo, o contraponto encontra um contraponto e tudo enfim acaba girando e se torcendo e se voltando pra um mesmo lugar e revelando, ao final desse ping-pong todo, que de objetiva existe apenas uma afirmação: Jacques Tourneur foi um dos melhores fabulistas do cinema e este seu cinema é todo de unidade, independente do gênero em que se instala. Porque o que interessa a Tourneur no resgate das memórias desse garoto não são os fatos, mas seu olhar sobre os fatos, a forma com que estas lembranças são construídas através da subjetividade que este olhar específico emana, o que faz de O Testamento de Deus um filme, porque não, muito próximo do fantástico se considerar que o que há de real em tela também adquire caráter subjetivo, imaginativo, por vezes possivelmente onírico.

E é realmente uma loucura. Há muito pouco de trama em O Testamento de Deus, assim como deve haver em todo bom filme sobre memórias – Alain Resnais explica; Abel Ferrara reforça; minha tia costureira concorda. Porque afinal, lembranças surgem neste fluxo descontínuo, flexível, alegórico e sempre ligadas a um sentimento que, da admiração ao rancor ou à simples felicidade ou tristeza, podem muitas vezes serem embaralhados e gerarem conexões curiosas e pouco confiáveis. Tourneur então associa continuidade narrativa a uma torneira despejando água, sem que estes pingos caiam sempre num mesmo ponto, mas de qualquer forma molhando todo o lugar. Analogias imbecis a parte, a conexão que se pode fazer entre as cenas é a relação entre o moleque e o pastor interpretado por Joel McCrea, uma espécie de mentor que substitui a característica figura do herói dos filmes de faroeste, mas que realiza a justiça com as armas mais incomuns já vistas em um western [/propaganda da Sessão da Tarde – até fim do ano uso bordões de todas as linhas] – como, por exemplo, em um dos momentos derradeiros e mais belos do filme, em que desarma a KKK com um pedaço de papel em branco. Este em especial é um momento sublime, daqueles que comprova a habilidade de Tourneur em lidar com sentimentos diversos, não apenas o medo e a tensão explorados em seus filmes de horror e suspense.

Além de tudo é um filme que olha para o passado (no caso o do menino e o dos Estados Unidos, que tinha no Velho Oeste a reestruturação de toda sua sociedade moderna, remontando as peças e se redesenhando politicamente, economicamente, socialmente, etcteramente) com um sentimento de nostalgia implícito que hipnotiza, capaz de acrescentar uma impressionante profundidade extra-diegética nas mais simples das ações (como um abraço ou simples olhar de admiração) que é capaz de fazer este faroeste ter o mesmo efeito que um daqueles vídeos velhos feitos por seu pai na chácara da vó (mas que merda, tô lembrando de todos os parentes escrevendo esse texto) enquanto você jogava futebol com uma bola de borracha velha e manchada de barro – ou cocô de vaca, se der sorte. E se não tirarmos proveito dessas sensações curiosas que filmes nos despertam e que muitas vezes são tão desconexas quanto a própria memória, bem, eu sinceramente troco essa coisa de analisar filmes pra ir na rádio comunitária comentar o campeonato de xadrez do grupo da terceira idade do bairro.

4/4

Daniel Dalpizzolo

2 Comentários

Arquivado em Comentários, Resenhas

2 Respostas para “O Testamento de Deus (Stars in My Crown – Jacques Tourneur, 1950)

  1. Ticiano

    Maravilha Daniel, esse filme ta na minha lista, mas se ele for tao bom quanto seu texto eu vou poder economizar meses em leituras psico-sociais rs! parabens, abs!

  2. Francis Vogner

    Bem interessante o texto.

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