Strange Impersonation (Anthony Mann, 1946)

Alguém aí já olhou para o espelho e teve a impressão de estar se enxergando pela primeira vez? Isso não é uma coisa que acontece sempre. Apesar de diariamente esbarrarmos em espelhos não é todo dia que, de fato, nos olhamos. Não consigo deixar de pensar Strange Impersonation como um filme em que Mann se dedicou a refletir este estranhamento do olhar pra si mesmo, do alguém que num ato involuntário enfrenta um processo de auto-descoberta em proporção tamanha, capaz de alterar não só o rumo da própria vida, mas do mundo ao redor.

Poucas vezes o cinema de Mann terá aberto semelhante rastro de destruição moral, apto mesmo a ser incluído na categoria baziniana de uma estética da crueldade. Isso porque sua espantosa protagonista Nora (Brenda Marshall), ao olhar-se no espelho, vê não somente a maldade mundana na qual está mergulhada, mas descobre-se igualmente capaz de dissimular, mentir e destruir; descobre-se humana. O acidente que lhe desfigura o rosto é o que lhe permite enxergar; e toda a transformação que enfrentará só será possível por esta irremediável perda, não a perda de uma pele, a qual será reconstituída com perfeição pela ciência, mas a perda de um olhar anterior, de uma inocência original.

Acompanhar a progressão da carreira de Mann nesta década negra é deixar o queixo cair e ver como questionamentos fundamentais ao homem foram abordados na dinâmica de seu olhar nada inocente. Um cinema de queda, de avesso, de contrários, por mais que a agilidade de seu bem-narrar disfarce tais conteúdos (outra face da subversão).

Um olhar superficial poderia facilmente acusar este filme por sua superficialidade. É impossível não se pegar rindo com alguns ‘descuidos’ tanto de roteiro (coincidências e acasos que beiram o sobrenatural, médicos que fumam numa sala de cirurgia) como de decupagem (inacabamento de alguns cortes, postura anti-natural dos atores), mas quando chegamos ao final de tudo também não dá pra ignorar como cada elemento foi coerentemente elaborado de acordo com o descuidado mundo criado por Mann, como dito, um mundo avesso. Cada inverossimilhança plantada em suas imagens condiz com o inverossímil da alma, nesse sentido, Mann nunca esteve mais próximo de Lang, que na mesma época legou um dos cinemas mais malditos que já se conheceu (aliás, este é um filme irmão de The Woman in the Window – 1944; não aprofundo a comparação pra não estragar a surpresa). E como em Lang, o que vemos aqui é uma manipulação que excede o tratamento cinematográfico, através de uma lógica desconexa e imprevisível, pautada por uma espécie de Destino (sim, o mesmo dos gregos).

O olhar de Nora ao espelho é um olhar de convencimento, de quase desistência, principalmente depois que o reflexo converte-se no expressivo julgamento que lhe assolará a derradeira impressão de felicidade. Aqui, Mann deixa muito claro que descrer na esperança é sua maneira de não sucumbir, de não desistir junto à personagem, iluminando um novo esclarecer de sua insistência ao noir. O cinema, mais do que um ato de criação (e para que assim o seja), também destrói, desfigura. E não são muitos os diretores que têm a coragem de declarar isso. Apesar de esbarrarmos com filmes diariamente, não é todo dia que, de fato, encontramos o cinema.

4/4

Fernando Mendonça

20 Comentários

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20 Respostas para “Strange Impersonation (Anthony Mann, 1946)

  1. Demais, o texto, Nando! É sempre bom encontrar nos filmes do Mann uma simplicidade que guarda mais coisas do que aquilo que se pode ver nestes filmes.

  2. Maicon

    É interessante quando vc cita os descuidos com o roteiro e atuações fracas, essas precariedades são um consenso entre a considerada “fase inicial” do Noir de Mann, que engloba os primeiros filmes que não foram citados aqui, passando pelo Stranger’s in the Night, do Dalpizzolo, os dois que vc cita, e indo até o The Bamboo Blonde, do Luis. Isso não se qualifica necessáriamente como fatores essenciais a qualidade dos (já muito bons) filmes do jovem Mann, mas sim, onde a pratica experimental começava a tomar forma, na criação da identidade do seu estilo autoral para o noir (ambientação e personagens urbanos, as aberrações psicológicas, a ambiguidade heroi/vilão e yada yada) que iria se solidificar definitivamente a partir de 1947, no julgamento do próprio diretor, que considera a data seu marco inicial de reconhecimento crítico e comercial.

  3. Daniel Dalpizzolo

    Filmes > roteiros, essa fase inicial é foda simplesmente porque seu olhar apurado para onde posicionar a câmera e como captar a imagem mais expressiva para cada ação são coisas que nasceram com ele. Como é dito >>>> o que é dito. São preferências minhas, nem todos pensam assim, mas etc.

  4. Maicon

    Sendo um roteiro um elemento que complementa um todo (o filme), obviamente vai ser considerado uma peça menor, porem, não se pode afirmar que a visão geral não seja afetada pela deficiência de uma de suas partes.

    Então se a maneira como algo é dito, vale mais do que é dito de fato, uma mentira bem contada…

    “Dalpizzolo’s facts” logo pela manhã de quarta é demais, vai fundir o meu cérebro! :P fuiii

  5. Sim, sim, todo bom cinema é uma boa mentira!

    E sobre as precariedades, acho mesmo que no caso desse filme, a falta delas prejudicaria o todo. Isso porque Mann encontra o avesso justamente pelo precário, pelo que falta. E o mais legal é que ele não disfarça a falta, mas acentua, o que comprova a consciência única que tinha ao se lançar numa filmagem.

  6. Daniel Dalpizzolo

    O roteiro não completa o filme, o roteiro é a base pra se fazer um filme. Pode-se seguir, pode-se não seguir, enfim, o cara faz o que quiser (e o que deixarem fazer, evidentemente). O que está no filme é o filme, simplesmente; dá o mesmo roteiro pra Mann, Lang, Wyler e Cukor e tu veria quatro filmes absolutamente diferentes com toda a certeza do mundo. Especialmente por ser a imagem a essência do cinema e tudo ser determinado a partir de como estes diretores e seus técnicos a compõem na situação encenada.

  7. Maicon

    se fossem “absolutamente” diferentes não teriam um roteiro em comum! assim perde-se qualquer parâmetro comparativo no exemplo que vc deu.

    mas veja bem, eu tento compreender as coisas dentro dos meus limites de “não-cinéfilo-profissional”. Vou tentar me aprofundar mais nessas questões sugeridas essa manhã

  8. Maicon

    e peço desculpas pelos comentários, ler um livro sobre o mann obviamente não se compara a experiência viva em sí : assistir aos seus filmes!

  9. Daniel Dalpizzolo

    É, você não entendeu.

  10. Maicon

    bang ! ………………………………………….. :(

    e a carreira como comentarista de cinema é assassinada!

    agora preciso de terapia para reconstruir o ego, e tambem aprender a falar menos e ouvir mais.

    :X

  11. Daniel Dalpizzolo

    É só você refletir um pouco… [/ginga]

  12. Daniel Dalpizzolo

    Tem um documentário brasileiro recente chamado Iluminados, onde dão uma mesma cena pra seis fotógrafos filmarem. Enfim, saem seis cenas absolutamente (o termo é esse mesmo, pq com a forma é q compoem a imagem) diferentes em enquadramento, angulos, iluminação e etc, que são fatores determinantes pra que se saiba o que um autor quer expressar com uma imagem.

  13. Maicon

    bem interessante! vou procurar na internet pra ver se consigo ampliar minha percepção. obrigado!

    (agora pense essa frase dita por uma voz moral e psicologicamente arrasada)

  14. Daniel Dalpizzolo

    Eu nem vi esse documentário, mas já li a respeito e vi screens de cada uma das cenas. Enfim, o documentário prova o óbvio e evidente, mas pode ser útil pra pessoas como você que estão iniciando agora nesse mundo mágico do cinema [/etc].

  15. Bom, sendo direto: acho completamente cabível o que o Daniel falou e concordo plenamente com ele.

    Se dessem o mesmo roteiro para os cineastas citados, creio que sairiam filmes diferentes sobre o mesmo tema-base, porque filmar é decisão, é escolha e, no cinema dos cineastas que o Daniel citou, é primordialmente uma questão de identidade que está presente nos planos e opções para estes.

    Mas gostei muito da forma como o Maicon defendeu seu ponto de vista=D

  16. Aê Maicon, não fale menos não viu! Acho incrível como o assunto rendeu e levantou questões importantes a serem consideradas.

    De fato, o ‘absolutamente’ do Dan é mesmo absoluto e tem que ser assim, e isso você pode comprovar em qualquer arte. Pintores, escritores e toda galera que resolve expressar alguma coisa por um viés estético, distinguem-se enquanto autores por causa de pontos de vista individuais, particulares. Fazer arte é isso – bem dito Rani -, é decidir, é olhar pro mundo e escolher uma forma diferente de figurá-lo.

    Mais uma vez Maicon, continue trazendo seus comentários, mesmo que com base apenas em leituras. Tenho adorado lê-los!!! E quanto aos filmes, você já conseguiu algum pra assistir? Em tempo: estou traduzindo as legendas desses primeiros, caso queria aguardar pelo português.

  17. É isso aí.

    E continue comentando, Maicon, se não fosse você seriamos apenas nós comentando-nos a nós mesmos próprios, heheh.

  18. Bernardo F. V.

    Ninguém tem dúvida que a patotinha “Multiplot! + meia-dúzia de Blogs por aí” representam o que há de mais alto nível tem termos de crítica e conhecimento cinematográfico no Brasil… e assim como o Maicon, existem muitas pessoas (eu) que frequentam esses ambientes não só para compartilhar visões/opiniões/etc mas para aprender… e quando o Maicon assume descadaramente essa posição está sendo mais sincero e honesto do que um bando de pseudo-crítico por aí…

    Maicon,continue com as suas dúvidas e perguntas que só enriquecem a discussão e dão uma movimentada nos posts…

  19. Maicon

    pessoal, vcs são demais mesmo! e me sinto honrado em poder manter esse contato de constante crescimento pessoal.

    Fernando, eu dei uma boa procurada e não consegui achar nenhum dos títulos comentados até aqui, seja o arquivo em vídeo ou as legendas, enfim, se vc tiver tempo me indique os links, eu posso te passar o e-mail, é o mesmo que eu uso pra comentar aqui, se der pra visualizar.

    desde já agradeço!

  20. É isso aí, Bernardo!

    E sim Maicon, vou entrar em contato contigo pra mais detalhes lá no Fórum.

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